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Sou um antropólogo brasileiro especializado em temas educacionais. Meus trabalhos focalizam as relações existentes entre a educação escolar e outras esferas da vida social. Atualmente, desenvolvo pesquisas sobre estratégias familiares e projetos de escolarização nas camadas populares das cidades do Rio de Janeiro e Petrópolis, ambas no Brasil. A abordagem inclui reflexões sobre a educação básica e o ensino superior. O debate sobre a construção social das juventudes é privilegiado porque permite interpretações refinadas sobre as relações entre educação escolar e expectativas de futuro. Trabalho no Departamento de Fundamentos da Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro-UFRJ onde ensino antropologia e sociologia da educação, além de orientar estudantes interessados no debate entre ciências sociais e educação.

quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

"Tem mais presença em mim o que me falta": Manoel de Barros e o futuro.

Eu gosto de poesia, e por algumas delas tenho um especial apreço. Vou colar uma delas aqui, com a licença de seu autor, Manoel de Barros. Depois vou dizer por quais motivos gosto tanto dela.

O livro sobre nada

Manoel de Barros

É mais fácil fazer da tolice um regalo do que da sensatez.

Tudo que não invento é falso.

Há muitas maneiras sérias de não dizer nada, mas só a poesia é verdadeira.

Tem mais presença em mim o que me falta.

Melhor jeito que achei pra me conhecer foi fazendo o contrário.

Sou muito preparado de conflitos.

Não pode haver ausência de boca nas palavras: nenhuma fique desamparada do ser que a revelou.

O meu amanhecer vai ser de noite.

Melhor que nomear é aludir. Verso não precisa dar noção.

O que sustenta a encantação de um verso (além do ritmo) é o ilogismo.

Meu avesso é mais visível do que um poste.

Sábio é o que adivinha.

Para ter mais certezas tenho que me saber de imperfeições.

A inércia é meu ato principal.

Não saio de dentro de mim nem pra pescar.

Sabedoria pode ser que seja estar uma árvore.

Estilo é um modelo anormal de expressão: é estigma.

Peixe não tem honras nem horizontes.

Sempre que desejo contar alguma coisa, não faço nada; mas quando não desejo contar nada, faço poesia.

Eu queria ser lido pelas pedras.

As palavras me escondem sem cuidado.

Aonde eu não estou as palavras me acham.

Há histórias tão verdadeiras que às vezes parece que são inventadas.

Uma palavra abriu o roupão pra mim. Ela deseja que eu a seja.

A terapia literária consiste em desarrumar a linguagem a ponto que ela expresse nossos mais fundos desejos.

Quero a palavra que sirva na boca dos passarinhos.

Esta tarefa de cessar é que puxa minhas frases para antes de mim.

Ateu é uma pessoa capaz de provar cientificamente que não é nada. Só se compara aos santos. Os santos querem ser os vermes de Deus.

Melhor para chegar a nada é descobrir a verdade.

O artista é erro da natureza. Beethoven foi um erro perfeito.

Por pudor sou impuro.

O branco me corrompe.

Não gosto de palavra acostumada.

A minha diferença é sempre menos.

Palavra poética tem que chegar ao grau de brinquedo para ser séria.

Não preciso do fim para chegar.

Do lugar onde estou já fui embora.

 

Esse é um dos meus poemas favoritos por causa de uma frase: “Tem mais presença em mim o que me falta”. A primeira vez que o li, pensei: como assim? Como o que falta pode ter tanta presença em alguém, ao ponto de a ausência ter mais presença do que a própria presença. Passei dias e dias pensando nessa frase, que não saia da minha cabeça nem a pau.

Depois de muito pensar entendi o que me incomodava e foi bom perceber que o incômodo advinha do fato de aquela bendita frase estar falando sobre mim, diretamente e sem nenhum entremeio. Qual era, afinal, a questão?

Descobri que o que me faltava era o futuro. Eu vivia de projetos e os projetos são, em certa medida, ausências, faltas, que se fazem presentes no plano das estratégias. Foi curioso ver a vida assim, entendê-la e aceitá-la. Mais curioso ainda pensar no quanto a cultura é responsável por tudo isso, por todas essas ausências. A antropologia demonstra que há sociedades que nós poderíamos classificar, com boa dose de etnocentrismo, como "sem futuro" porque não se pensam para além do presente, não têm projetos para além da vida cotidiana e mais próxima. Da mesma forma, há sociedades que dialogam com o passado de forma muito diferente. Em comparação, nós até mesmo as classificaríamos, com outra dose de etnocentrismo, como sociedades “sem passado” porque nem mesmo as datas de nascimento importam. São outros tempos e outros espaços que formam outras pessoas, com preocupações muito diferentes das nossas e das minhas em particular.

Não aboli os projetos da minha vida. Pelo contrário. Sou um cientista e cientistas vivem disso, de projetos, de faltas, de ausências. Esse é o nosso trabalho, mas não tem que ser, é claro, a nossa vida. Sigo com minhas faltas e minhas ausências, mas resolvi essa questão reservando um bom tempo para pensar nas presenças que não faltam. Elas envolvem símbolos, coisas e principalmente pessoas. Hoje, penso que o que mais importa são as pessoas, nada além delas. São elas que deixam marcas indeléveis em nossas existências. São elas que nos sacodem, esticam, esmigalham, constroem e reconstroem nossos cotidianos. Assumem papéis, trocam de papéis, nos amam, nos odeiam e nos amam de novo. São elas, as pessoas de nossas vidas.

Eu dedico esse post para todas as pessoas da minha vida. Vocês sabem quem são vocês e o quanto me sacudiram, esticaram, esmigalharam; construíram e desconstruíram a minha existência. Peço que continuem assim, exatamente assim; e espero ser assim para vocês também. Juntos podemos viver bem as presenças e ajudarmo-nos a lidar com as ausências. 

Um feliz ano novo para todo mundo.

sábado, 12 de dezembro de 2020

Adeus, Ubirany. Quantas saudades a tua voz e a tua defesa do subúrbio deixarão!

Ubirany Félix do Nascimento morreu. Mais uma das vítimas da pandemia. Ele se foi, mas sua voz e suas realizações no mundo do samba deixaram marcar indeléveis na cultura brasileira em geral e na cultura carioca em particular.

Ubirany é reconhecido como um dos membros fundadores do grupo Fundo de Quintal e como o inventor do repique de mão. Isso tudo é verdade e o reconhecimento é mais do que legítimo. Aliás, trata-se de um inventor de um instrumento hoje produzido e vendido no Brasil inteiro e em boa parte do mundo, e que nunca foi patenteado pelo seu inventor. Bom, é como diz o samba do Candeia, “o sambista não precisa ser membro da academia. Ser natural com sua poesia e o povo lhe faz imortal...”.

Todas essas conquistas são impressionantes, mas eu quero ressaltar outro lado do Ubirany. Aquele ligado à identificação e a defesa da “cultura suburbana” do Rio de Janeiro. Ele sempre se apresentou como um homem do subúrbio, que tinha orgulho de ter nascido e vivido no subúrbio e que trazia outra perspectiva dessa cidade, apresentada pelos bairros recortados pela linha do trem. Ele era um homem de fala serena, que fazia questão de enfatizar que respeitava todos os tipos de música, mas que gostava mesmo era de fazer e cantar samba. Não foi um artista pensado – em termos de projeto – para ser artista. Como ele mesmo conta, a história do repique de mão começou quando ele estava em um samba na casa de amigos, tocando em um balde de alumínio, tudo em parte como obra do acaso. O mesmo aconteceu com o Cacique de Ramos e com o Fundo de Quintal. Não havia um projeto artístico cultural stricto sensu, mas sim o desejo de encontrar as pessoas, conversar, tocar e cantar samba; tudo sempre abençoado pelos orixás que guardavam a cabeça de sua falecida mãe e dele também.

Samba, candomblé, umbanda, carnaval, amizade, encontros fortuitos e despretensiosos. Era nesse mar que Ubirany navegava e foi assim que se tornou um ícone da cultura popular. O samba feito no fundo do quintal ganhou o Brasil e o mundo e ele, junto de seus parceiros, tornou-se uma referência nacional. Para aqueles que gostam de samba, vale a pena ouvir os discos do Fundo de Quintal e cantar junto todas as músicas que iluminam nosso mundo do samba, tanto aquelas escritas por eles quanto as pérolas de outros compositores consagrados nas vozes do grupo. Para aqueles que não gostam de samba, só tenho a dizer o seguinte: nunca é tarde!

Ubirany deixará muitas saudades. O mundo do samba chora e todos nós temos a obrigação de cuidar do legado cultural deixado por ele. De forma refinada e sutil ele sempre deixou claro que a cultura carioca é muito maior do que pensamos, que o subúrbio pulsa e que a poesia não tem lugar de nascimento. Ela está em todos e para todos.

Salve Ubirany! E que os orixás te guiem!!!

Deixo aqui uma das minhas preferidas. “Sonho de Valsa”, um samba triste, com metáforas impressionantes e carregado de sentimentos.

https://www.youtube.com/watch?v=6D9Pyp1RFy8


sábado, 7 de novembro de 2020

“Praia dos ossos”, “família Doriana” e as punições diárias vividas pelas mulheres

Ângela Diniz foi uma socialite influente na segunda metade do século passado. Ela teve a sua vida abreviada, assassinada por Raul Fernando do Amaral Street. O crime deu origem a um dos julgamentos mais controversos da história do direito penal Brasileiro. Nele, a vítima foi transformada em algoz de sua própria morte, e esse argumento nonsense foi suficiente para convencer o tribunal do júri em primeira instância. O crime foi tratado como um “crime de honra” e, por isso, o assassino foi visto como vítima. Embora inacreditável, esse argumento esteve presente em nossos tribunais por longos anos. O assassino era conhecido por um apelido – Doca – e, por isso, o caso ficou conhecido na imprensa como “caso Doca Street”.

Quando eu fiz doutorado, fui orientado pela Mirian Goldenberg que, dentre muitos livros, escreveu um sobre outra Diniz, a Leila, que também morreu jovem, mas em um acidente de avião. O livro se chama “Toda Mulher é Meio Leila Diniz”, e já teve várias edições desde que foi lançado na década de 90 do século passado. Por conta do convívio com a Mirian, e das leituras de dezenas de textos acadêmicos relacionados às mulheres em específico e às relações de gênero em termos mais gerais, aprendi que em muitos casos as mulheres são punidas pela sociedade simplesmente por desejarem ser livres para definir seus destinos e suas relações afetivas. Leila Diniz foi idolatrada e punida. Endeusada e achincalhada, assim como Ângela Diniz. Ambas pagaram o preço pela liberdade, e foram mulheres que anteciparam comportamentos que só viriam a se consolidar muitos anos mais tarde. Elas bancaram todas as punições e os julgamentos sociais porque queriam ser livres para decidir o que fariam de suas próprias vidas.

É curioso pensar que precisei dessas leituras para perceber esse fenômeno tão corriqueiro, da punição social das mulheres que desejavam escolher as vidas que queriam viver. Eu tinha 22 anos na época, recém-chegado de uma cidade do interior onde as relações de gênero eram muito demarcadas e, também por isso, naturalizadas e quase nunca relativizadas no âmbito das interações cotidianas. Havia muitos casamentos tradicionais, minhas colegas de turma do ensino médio – não todas - pensavam em casar e ter filhos ainda muito jovens, montar uma casa, cuidar de seus maridos e de seus filhos, quase um comercial de Doriana.

Para quem é mais jovem e não viu ou não lembra do famoso comercial que deu origem à ideia de “família Doriana”, pode assisti-lo aqui: https://www.youtube.com/watch?v=avyxVkaaRtM. Doriana era uma margarina famosa na época. No comercial, uma mãe aparece correndo para lá e para cá, preparando alimentos, sempre com Doriana, servindo ao marido, aos filhos e aos avós que chegam na casa. No jingle, ao final, tem-se a pérola: “aqui tem Doriana a gente logo vê, os elogios são para você”. A dubiedade é a seguinte: a dona da casa corre para lá e para cá, não come, serve todo mundo e no final quem recebe os elogios é a margarina, não ela. Em síntese, para ser mulher você tem correr o tempo todo, não comer nada, agradar a todo mundo e ao final não receber nem mesmo os elogios por tudo o que fez. Esse era o recado do comercial para as mulheres da época.

A propósito: eu detestava Doriana. Era uma margarina terrível!

Mas o que isso tudo tem a ver com as duas Diniz – a Ângela e a Leila?

É simples, elas nunca quiseram uma “família Doriana”. Optaram por uma vida diferente, livre e desimpedida. Tiveram vários namorados, assumiram posturas controversas na grande mídia, não se preocuparam com o que era esperado de uma “moça de família” e seguiram com seus projetos de vida.

Eu me lembrei da Ângela Diniz por causa do podcast Praia dos Ossos. Uma amiga querida, futura antropóloga, me indicou esse podcast dizendo que estava impressionada com o caso, que ela não conhecia até então. O podcast foi idealizado e é apresentado pela jornalista Branca Vianna. Está disponível na radio novelo (https://www.radionovelo.com.br/praiadosossos/) por intermédio de vários aplicativos de som.

O nome “Praia dos Ossos” foi escolhido porque Ângela Diniz foi assassinada em uma casa na praia dos ossos, em Búzios. Não vou dar spoiler sobre o material. Vale muito a pena ouvir. Só queria destacar o intenso trabalho investigativo que foi realizado pela jornalista e por toda a sua equipe. Elas buscaram imagens de época, jornais, entrevistaram as pessoas que tiveram algum envolvimento (incluindo Doca Street), visitaram os cenários. Em síntese, um trabalho imenso com alguns bons tons de investigação etnográfica. Os podcasts são uma ótima novidade na minha visão, e esse tipo de podcast investigativo abre um campo de atuação bem interessante para antropólogas e antropólogos que desejam trabalhar com fatos históricos, dentro e fora da Universidade.

Ouçam “praia dos ossos”. Vale muito a pena! Esse trabalho, em minha visão, ajuda muito na relativização de preconceitos e discriminações de gênero e, consequentemente, no combate às desigualdades relacionadas a esses preconceitos e a essas discriminações. 

Referências:

Site da Rádio Novelo:

https://www.radionovelo.com.br/praiadosossos/

GOLDENBERG, M.. Toda mulher é Meio Leila Diniz. 2. ed. Rio de Janeiro: Record, 1995. 251p .



domingo, 6 de setembro de 2020

Alteridade e empatia em "Estou pensando em acabar com tudo", novo filme de Charlie Kaufman.

Eu passei parte da madrugada de hoje assistindo ao novo filme do Charlie Kaufman “Estou pensando em acabar com tudo”. O roteiro do filme é baseado no livro de mesmo título, escrito por Iain Reid, que conta a história de Lucy, uma jovem que pensa em terminar um relacionamento afetivo depois de 7 semanas de seu início.

Tudo começa com uma viagem à casa dos pais de Jake, seu namorado, e já durante o trajeto todas as questões internas vividas pela personagem aparecem em seus pensamentos, seus olhares para Jake, suas ações e nos diálogos entre o casal. Jake parece não entender bem o que está ocorrendo ali naquele carro, talvez por estar mais preocupado com o encontro entre ele, sua nova namorada e seus pais. São dois jovens juntos e solitários em suas questões, dentro de um mesmo carro, seguindo não sabem muito bem para qual lugar. Ela porque não conhece nem o lugar e nem os pais. Ele porque embora conheça tudo, não faz a menor ideia da relação que surgirá deste encontro.

Há um conjunto de questões filosóficas e existenciais presentes no filme, mas a que me parece mais forte é a temática da finitude das relações humanas. Não somente porque ela está presente desde o título, mas porque ela surge em dezenas de cenas, envolvendo todos os personagens numa trama que ocorre de forma não linear.

A trama não linear e o debate sobre a finitude são um dos paradoxos mais interessantes do filme. Ao mesmo em tempo que o roteiro subverte nossas visões sobre presente, passado e futuro, aponta como princípio da finitude o fato de os homens nunca conseguirem viver no presente porque guardam memórias do passado e expectativas de futuro.

É claro que Kaufman comete um exagero nada antropológico quando propõe esse princípio porque há sim sociedades em que nosso modelo linear de tempo não faz o menor sentido, e não são poucas. Não vou entrar nesse debate aqui porque o texto deixaria de ser um post. Um passeio pelo debate sobre tempo e espaço na antropologia ajuda a relativizar tal postulado.

Para aqueles que vivem em uma temporalidade linear e ao mesmo tempo reconhecem as limitações dessa temporalidade o filme é um primor. Qual é o tempo certo de terminar uma relação? E o que acontece com ela quando ela termina? O que há de eu e de outro nas decisões relacionadas ao término de uma relação? E quando esse término é imponderável?

O filme trata de todas essas questões. A morte aparece como um imponderável. Quando ela surge, as relações entre os mortos necessariamente se transformam. Alguns diriam que acabam, mas eu particularmente não concordo com isso. Nossos mortos fazem parte de nossas vidas e, por vezes, chegam a pautar a agenda de nossas existências. Mas eles ganham outro estatuto, gerado pelas memórias que escolhemos para guardar. Há mortos amados e mortos odiados e esses sentimentos variam mais na forma do que no conteúdo. Quando os amamos ou os odiamos queremos no fundo permanecer em relação com eles.

Mas a finitude também aparece no filme no relacionamento entre os vivos. Viver um relacionamento afetivo envolve, dentre muitas outras, duas questões centrais: a experiência da alteridade e a empatia a ela relacionada. Como ser eu sendo o outro simultaneamente? Essas questões se colocam para todos os casais, com roupagens as mais diversas, e também para outros relacionamentos como pais e filhos, amigos, irmãos. O grande dilema inicial de Lucy é exatamente esse. Ela estava começando um relacionamento com Jake e não sabia se desejava continuar. É claro que ela também não sabia se ele queria ou não, mas a ação de levá-la à casa dos pais dele indicava que sim, e ela questionava inclusive a noção de justiça envolvida naquela viagem. Seria justo ir à casa dos pais do Jake mesmo pensando em acabar com a relação?

A sequência do filme torna essas questões ainda mais intensas. Eu não teria como desenvolvê-las aqui sem dar vários spoilers. Vou terminar compartilhando a questão que, para mim, é a mais importante do filme. Uma relação nunca acaba porque mesmo que deixemos de ver e conviver com alguém essa pessoa permanece conosco no plano da memória e tudo o que vivemos com ela faz parte do que somos. Há também relações que se transformam com o tempo, continuam existindo, mas como em um vácuo. Jake se relacionava com os pais no presente, mas com a cabeça e os sentimentos conectados à relação que tinha com eles no passado. Logo, não havia relação no presente para além das memórias do passado. Meu ponto é que isso ocorre porque as relações do passado foram tão fortes na construção do homem que o Jake é, que deixá-las para trás seria abrir mão do próprio Jake, algo assustador para qualquer pessoa. Porém, talvez se Jake tivesse “matado” seus pais do passado, poderia ter construído uma relação diferente com eles no presente, tendo seus pais também no presente. Em termos antropológicos, ser eu é ser outro simultaneamente. E nesse jogo de identidades e alteridades definimos quem nós somos e quem são os outros, com alguma margem de escolha. Ninguém é bom ou mau, belo ou feio, certo ou errado, Deus ou o Diabo. Todos nós fomos e somos isso tudo; e nossas relações dependem da pitada de cada item que queremos colocar nesse “caldeirão de empatias”. Inaugurar uma nova relação a cada período com nossos entes queridos pode ser bom, principalmente reconhecendo o que há de bom e de mau em cada um deles. Esse parece ser um dos recados do filme. É um tremendo paradoxo, mas acabar com tudo e começar tudo pode ser a mesmíssima coisa, desde que queiramos aqueles outros em nossas vidas, dentro das possibilidades trazidas por novas formas de relacionamento. Enfim, assistam ao filme! Vale muito a pena.

terça-feira, 28 de julho de 2020

“Falou que conheceu até o Lula, acredita?”


Esse post poderia ter por título “vida de trabalhador”, mas achei melhor destacar um fragmento de um dos diálogos mais potentes do filme “Arábia”. Nesse filme, dirigido por Affonso Uchôa e João Dumans, o ator Aristides de Souza interpreta Cristiano, um trabalhador sazonal que registrou em um caderno a história de sua vida pouco antes de morrer. 

Aristides Souza realiza uma atuação impecável. Dá vida ao Cristiano, que trabalhou a vida inteira e não tinha nada, nem mesmo sobrenome. Foi trabalhador rural, operário fabril, faz tudo, peão de obra. Em síntese, trabalhou para viver e vivia apenas um dia de cada vez. Ele também passou a vida na estrada, de ponto a ponto a procura de trabalho. Dormiu na rua, em vagas oferecidas por pessoas que conhecera na estrada ou nas cidades em que parava; e terminou sua vida em uma vila operária.

O filme permite um mergulho profundo nas relações desenvolvidas por um homem que nada tinha, e encontrava pelo caminho outros homens e mulheres que também não tinham nada, além da roupa que vestiam e da parca comida que os alimentava. Ainda assim dividiam tudo. Como dividir o que não se tem? Parece um grande mistério, mas é apenas a existência das populações mais marginalizadas que está ali escancarada em cada tomada do filme. Alguns personagens tiveram passagens pela polícia, inclusive Cristiano, mas eram todos honestos e prezavam por uma vida modestíssima, mantida pelo suor de seus corpos. Ninguém queria voltar para a cadeia, ainda que precisassem esfolar seus corpos vivos para que isso não acontecesse.

No meio de toda essa miséria, surgem interações afetivas, amorosas, amizades intensas, carinho, cuidado, dúvidas sobre o que afinal é a vida e uma motivação intensa para continuar vivendo. Cristiano não desiste nunca, mesmo quando o mundo inteiro parece jogar contra ele. Ele segue em frente sem dinheiro, sem casa, sem família, sem nada além da estrada.

No meio do filme ocorre o diálogo do qual retirei o fragmento que dá título ao post. Um grupo de trabalhadores rurais conversava sobre um ex-sindicalista que tinha enfrentado os fazendeiros por melhores condições de vida para os trabalhadores da colheita de tangerina. Dali, depois daquelas lutas, seguiu para São Paulo, e supostamente teria conhecido o Lula. Naquele momento, já idoso, o sindicalista tinha voltado para a sua terra natal e permanecido nela até morrer.

Não foi por acaso que escolhi esse fragmento. A referência ao Lula não foi acidental no filme e muito menos aqui nesse texto. Lula também é um sindicalista velho, que enfrentou muitas lutas e em todas elas tinha como foco os trabalhadores. Foi para os milhares de Cristianos presentes no Brasil que Lula viveu e vive. Os trabalhadores, esses homens e mulheres que desenvolvem suas existências em meio à miséria material, sempre estiveram no escopo das ações políticas de Luis Inácio Lula da Silva. Eles são muitos, também são brasileiros e quase ninguém lembra deles.

Você, leitor, lembra?

Vale a pena assistir ao filme para lembrar. Ele está disponível gratuitamente no site do Itaú Cultural. Basta seguir o link: https://www.itaucultural.org.br/arabia-mostra-brasil-cinema-agora. Prefiro não dar mais nenhum spoiler. Quem sabe aguço a curiosidade de quem estiver lendo. Em tempos de corona vírus, sugiro o filme também para todos aqueles que estão praguejando contra Deus e o Diabo porque têm o privilégio de ficar em casa. Cristiano jamais poderia ficar em casa porque ficar em casa significaria morrer de fome. Entre morrer de fome ou pelo COVID-19...

Além do roteiro primoroso, o filme também apresenta uma trilha sonora incrível, que começa com o “Blues Run The Game”, do Jackson C. Frank, passa por “raízes”, do Renato Teixeira, dentre muitos outros. Algumas músicas são interpretadas pelos personagens, em seus momentos de diversão.
Cristiano e seus companheiros de vida, de trabalho e de estrada também encontravam diversão. No meio do caos material eles cantavam, chegaram a fazer teatro e viviam juntos. Suas existências superavam a miséria e abriam espaço para questões existenciais que são de todos nós. A vida sempre dá um jeito.

sábado, 23 de maio de 2020

Amado Batista, a breguice e a confeitaria Santo Amaro


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Faz pouco tempo que assisti a um documentário sobre o Eduardo Coutinho, chamado Banquete Coutinho, de 2019. Tratava-se de uma homenagem ao cineasta, que o colocava do outro lado da filmadora. Ele falou sobre uma série de temas, citando seus próprios filmes para exemplificar o que dizia. Em um determinado momento, falou sobre a música e o poder de sedução que ela exerce nas pessoas. Deu a entender que a música seria mais forte do que o cinema na vida das pessoas e cantarolou uma estrofe.
Exatamente nesse momento eu tive um estalo de memória, que me transportou para algo que vivi faz uns 10 anos, na confeitaria Santo Amaro. Para quem não conhece, essa confeitaria funciona 24 horas, no bairro da Glória aqui no Rio de Janeiro.
Era uma sexta-feira. Parei lá por volta das 22h:30m. Eu tinha dado aula à noite, estava com fome e decidi comprar cervejas e uns petiscos para beber e comer em casa. Fui ao caixa, paguei e me dirigi ao balcão da lanchonete, onde a atendente entrega itens como os que eu havia comprado. Parei em pé no balcão e de repente o mundo inteiro parou. Fiquei com o braço estendido, segurando a nota do caixa enquanto a menina não se mexia. Olhei para o lado e o taxista que estava lanchando tinha congelado o sanduiche entre o prato e a boca, como numa cena de cinema. Olhei ao redor e todos estavam assim, congelados e com os olhos vidrados na televisão.
Todos os olhares foram deslocados para a tela quando um violoncelo deu o tom para ele, Amado Batista, soltar a voz em um de seus clássicos “reclamando sua ausência”, em versão acústica. Em alguns segundos, irrompe Amado com a primeira estrofe: “eu sei, foi o amor que fez você me amar. Eu sei, que esse amor, vai fazer você voltar”. Foi um fenômeno. A padaria inteira parou como se estivéssemos em um recurso cinematográfico de congelamento. As balconistas, os garçons, o taxista que comia seu sanduiche, a caixa, as pessoas que estavam na fila da caixa, o gerente. Todo mundo! Foi como um transe ritual, que durou até Amado reclamar da ausência da amada. Nesse momento, todos começaram a cantarolar, como se junto com ele também reclamassem pela ausência de suas e seus amados. “E agora, estou sozinho reclamando sua ausência..”.
Que força é essa, pensei! Que poder é esse que emana dessa letra e dessas notas? É claro que pensei nisso enquanto fazia coro com os outros cantarolantes na padaria. Pessoas de diversos tipos, trabalhadores de balcão, taxistas, moradores do bairro que estavam ali para comer e beber, todos juntos. A música terminou, recebi minhas cervejas e meus petiscos e fui embora com as estrofes ainda buzinando na minha cabeça.
Ao lembrar dessa cena urbana, concordei imediatamente com o Coutinho. A música tem esse poder de sedução e tendo a argumentar que a música popular é mais forte nesse sentido. São notas simples, com rimas pueris, sem grandes floreios literários; e sempre voltadas para as nossas emoções mais profundas.
Tristeza, solidão, saudades de um grande amor são capazes de criar conexões entre pessoas que não se conhecem e nunca se viram até aquele momento; todas elas mediadas pela música. Amado Batista é um especialista nesse assunto e junto com vários outros integra essa grande categoria englobante chamada de Brega. É muito brega, mas... sempre agrega. O velho Durkheim ajuda a explicar essa força coletiva que transforma todos nós em um em determinados momentos. Quem nunca curtiu uma breguice que atire a primeira pedra. Ou melhor: vá curtir. Tenho certeza que vai gostar. Se quiserem começar por “reclamando sua auência”, a letra está aqui:
Eu sei
Foi o amor que fez você me amar
Eu sei
Que esse amor vai fazer você voltar
Espero
Que a saudade te vá bater no coração
E quando
Ela bater vai saber que estou te amando
E agora estou sozinho reclamando sua ausência
Na esperança dos bons ventos te soprar
Lembrar de mim e saber que ainda existo
E agora estou sozinho reclamando sua ausência
Na esperança dos bons tempos te tocar
Lembrar de mim e saber que ainda existo.

E o vídeo com a versão acústica está aqui:


Boa breguice no final de semana!

domingo, 10 de maio de 2020

A mãe da minha mãe e os tomatinhos.


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Eu adoro tomate sweet grape. Esse tipo é especial porque me remete a memórias deliciosas da minha infância. Minha avó gostava de ter uma horta. Ela plantava couve, jiló, mandioca e tudo o mais que dava na telha. As verduras, principalmente, ficavam ali, fresquinhas, e ela colhia de acordo com a vontade de comê-las. Essa tradição é muito comum no interior das Minas Gerais. Boa parte do almoço fica ali no quintal da casa, e o cardápio é definido de acordo com o que está disponível no momento e com a vontade de comer.
Eu me lembro nitidamente do quintal da minha avó. Já se passaram 30 anos desde que o vi pela última vez. Foi um momento muito triste, em que ela era velada na sala de estar da casa. Pois é. Naquela época os mortos eram velados em casa e foi assim que me despedi da minha avó e de todo o mundo que ela construiu na sua casinha na beira do rio. Depois disso, voltei à casa somente uma vez, mas já não era a casa dela. Era um imóvel, já ocupado por outra família. Todo o universo simbólico que envolvia aquela propriedade foi-se junto com minha avó.
Mas o que tudo isso tem a ver com tomate? Certa vez, eu era bem pequenininho, provavelmente tinha uns 10 anos de idade; saí de Petrópolis com minha família e fomos visitar a minha avó. Assim que ela abriu o portão, eu pulei em cima dela e dei de cara com um pé de sweep grape repleto de tomatinhos já maduros. Foi um encantamento só. Ela percebeu e disse algo do tipo: “é para você, meu filho, estava te esperando pra gente colher”. Corri imediatamente para os tomates, colhi todos e comi boa parte deles ali mesmo, enquanto meus pais morriam de rir com aquela euforia de criança.
Essa história resume três das coisas mais importantes que minha avó ensinou para mim e para minha mãe: afeto, cuidado e paciência. Ela tinha calculado o tempo necessário para plantar e ver crescer os tomates de forma que eu chegasse na hora certa de colhê-los. As quantidades de afeto, cuidado e paciência presentes nessa atitude são incomensuráveis, e eu adoraria dizer a ela o quanto me marcou. Infelizmente ela se foi e não vai saber disso. Hoje eu posso apenas lembrar essa história. Talvez minha mãe se lembre, talvez não. Não sei. É uma história do amor que a mãe dela sentia por mim. Um amor tão incondicional quanto o que ela guarda por mim, por meus irmãos e meus sobrinhos.
É impossível para um filho entender o que é ser mãe. Só as mães sabem e acho bem bom que fique como um segredo delas. Mas aquele menino que colhia tomatinhos plantados e cuidados para ele tinha certeza de que ali ele era a pessoa mais importante do mundo. Foi isso que minha avó e minha mãe fizeram por mim, e nunca pediram absolutamente nada em troca.
Muito obrigado, minha mãe. Muito obrigado, minha avó. O amor que está em mim é o que veio de vocês. 

sexta-feira, 1 de maio de 2020

Pode a etnografia contribuir com a vida em tempos de cultura corona?



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Esse texto visa homenagear as trabalhadoras e os trabalhadores dos serviços essenciais. Muito obrigado a vocês que estão colocando as suas vidas em risco permanente em prol da saúde de todos nós.
        Eu ministro uma disciplina no Programa de Pós-Graduação em Educação da UFRJ chamada “estudos etnográficos em educação”. O curso envolve um debate sobre etnografia, teoria e produção de conhecimento antropológico; além de entrar nas minúcias dos bastidores do trabalho de campo de antropólogos brasileiros e estrangeiros, e discutir estudos etnográficos na educação.
Certa vez, em uma das aulas, um dos alunos perguntou: “mas professor, o que leva uma pessoa a querer fazer uma etnografia?” Ele justificou a questão afirmando que estava evidente que a etnografia provocava uma série de experimentações subjetivas no antropólogo(a), e também causava sofrimentos os mais diversos. Por isso, ele não entendia por quais motivos alguém poderia desejar isso.
A questão foi tão perspicaz que acabou tomando boa parte daquela aula. Eu comentei que a opção pela abordagem etnográfica envolve entregas subjetivas significativas. O(a) antropólogo(a) precisa estar disposto a relativizar até mesmo os aspectos mais básicos da sua própria cultura, para conviver com outras pessoas que, por vezes, pensam e sentem o mundo de formas totalmente diacrônicas às suas. Esse processo de convivência envolve uma série de crises existenciais que recheiam capítulos iniciais de etnografias e os diários de campo dos(as) etnógrafos(as). As etnografias só são possíveis exatamente porque os(as) etnógrafos(as) escolhem estar em campo e, consequentemente, escolhem viver também todas essas crises. Agora, o que tudo isso tem a ver com o coronavírus?
A eclosão da pandemia de coronavírus trouxe consequências significativas para as interações sociais. De uma hora para outra fomos obrigados – aqueles que são mais privilegiados – a permanecer em casa, trancados, em isolamento social. Esse novo lugar social ocupado por todos nós em medidas diferentes nos obrigou a reconfigurar nossas vidas cotidianas e nossos relacionamentos pessoais, profissionais, afetivos, sexuais. Em síntese, tivemos que mergulhar em um mundo desconhecido que até então simplesmente não existia. Esse mergulho, comparativamente, é semelhante ao mergulho do etnógrafo. Porém, há duas dessemelhanças. A primeira delas é que o antropólogo(a) escolhe mergulhar nas culturas dos outros enquanto todos nós fomos obrigados a mergulhar na cultura do corona-vírus. A outra é que o(a) antropólogo(a) mergulha em uma cultura sobre a qual tem algum nível de conhecimento e reconhece sua existência. Nós não conhecemos nada sobre a cultura do isolamento social e nem mesmo oferecemos a ela o estatuto de realidade.
Ainda que existam diferenças significativas, os exercícios etnográficos nos ajudam a sobreviver em tempos de cultura corona vírus. A principal ajuda refere-se à crise inicial proporcionada pelo mergulho em culturas desconhecidas. A subjetividade do(a) antropólogo(a) necessariamente fica tensionada e ele entra em uma crise existencial ao deparar-se com uma cultura tão diferente da sua. A temporalidade da crise será equivalente ao tempo que o antropólogo utilizará para aceitar novas formas de falar, andar, comer, vestir, conversar, entre outras. Quando aceita, a crise ganha outras tonalidades e só volta mais intensamente quando ele retorna para a própria cultura. Essa regra vale tanto para antropólogos(as) que pesquisam culturas exóticas quanto para aqueles que pesquisam culturas familiares. Ainda que realizado em culturas familiares, o mergulho etnográfico provoca crises existenciais causadas pela dinâmica familiar-exótico-exótico-familiar, descrita em detalhe nos textos de Roberto Da Matta e Gilberto Velho na segunda metade do século passado.
Nosso mergulho na cultura corona não foi escolhido por nós e consequentemente teremos crises existenciais provavelmente mais intensas. A experiência dos(as) etnógrafos(as) nos diz que o melhor caminho é aceitar esse mergulho e experimentar essas novas formas de cultura. Ninguém sabe ainda como será o mundo pós-corona vírus, mas o fato é que já estamos vivendo nele. Negá-lo, além de causar sofrimento subjetivo também contribui para o aumento da tragédia trazida por essa pandemia. Fiquemos em casa, construamos um novo mundo de nossas janelas físicas e virtuais e agradeçamos a todos aqueles que não podem ficar em suas casas e estão salvando nossas vidas enquanto colocam as deles em risco permanente.
Muito obrigado aos trabalhadores e trabalhadoras da saúde e de todos os serviços essenciais. Não há nada que pague o que vocês estão fazendo por nós.

Referências bibliográficas citadas:
DAMATTA, Roberto. “O ofício do etnólogo. Ou como ter anthropological Blues”. Rio de Janeiro: Boletim do Museu Nacional (27). 1978.
VELHO, Gilberto. Observando o Familiar. In: VELHO, Gilberto. Individualismo e Cultura: notas para uma antropologia da sociedade contemporânea. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999.


sábado, 18 de abril de 2020

“Onde que eu fui parar, aonde é esse aqui?”


 O conteúdo desse post também está disponível em formado podcast, no link:


           A pergunta que dá título a esse post não é minha. É do Arnaldo Antunes. Ele é um dos músicos mais admiráveis do Brasil contemporâneo. Desde a época dos Titãs, eu sempre o via como uma das principais artérias do grupo. A outra era o Nando Reis. Depois, ambos seguiram brilhantes carreiras solo. São abordagens estéticas e musicais muito diferentes e, na minha leitura, bem complementares.
            A pergunta que dá titulo ao post abre a letra da música “longe”, composta pelo Arnaldo, junto com o Marcelo Jeneci da Silva e o Roberto Aguiar de Oliveira. É uma letra intimista, que apresenta um diálogo do eu lírico com seus sentimentos mais profundos. Perguntas como “Onde foi parar?” “Onde é esse lugar?” E outras que embalam um mergulho intenso na subjetividade individual em relação com o mundo externo.
            Hoje pela manhã, enquanto ouvia essa música, fiquei pensando no novo mundo que se descortina para todos nós. Não sabemos exatamente como viemos parar aqui. Mas temos certeza de que continuaremos por um bom tempo. A balada parece triste, solitária, melancólica. E realmente é, em alguns aspectos; mas também motiva um mergulho em nós mesmos, em nossas subjetividades e na solidão. Por que não? Toda a reflexividade que brotará desse mergulho vai nos ajudar a entender onde estamos, e para onde desejaremos ir depois que o pior passar.
Deixo vocês com a música, em uma versão do CD “ao vivo lá em casa”:



terça-feira, 7 de abril de 2020

A janela, o COVID-19 e um mundo novo para interpretar

Olá,
Esse post também está disponível em formato podcast. Caso prefiram, é só clicar no link.

https://soundcloud.com/rodrigo-rosistolato/200407_007a

Seguimos com o texto:

Existe uma regra elementar para quem deseja estudar e fazer antropologia. É preciso observar. Há dezenas de debates acadêmicos sobre o que é, afinal, a observação etnográfica. Parece um nome pomposo, misterioso, ao ponto de alguns pesquisadores fugirem dele. Mas não é tão complicado assim.

Qualquer antropólogo que se prese precisa estar atento ao comportamento dos outros. Em campo, ele tem que buscar entender o que os outros estão fazendo, e também o que estão pensando sobre o que fazem. Além disso, o mundo interno do antropólogo também precisa ser objeto de reflexão. Esse olhar antropológico demanda atenções diversas e foco em mosaico. É fundamental observar cada peça, mas olhar para o cenário inteiro também.

No início do treinamento antropológico alguns estudantes ficam assustados, e até felizes quando descobrem que não é necessário ser etnógrafo para ser antropólogo. Outros, como foi o meu caso, ficam encantados com o desafio de viver a vida com as pessoas que você está pesquisando e separar analiticamente cada momento dessa vivência para produzir uma abordagem propriamente antropológica.

Parece bem difícil, mas com o tempo vira um tipo de vício. No segundo ano da graduação eu passei a me perceber vivendo dentro e fora dos cenários de sociabilidade que eu frequentava. Ao mesmo tempo em que curtia uma noite na Lapa, por exemplo, passava boa parte do tempo olhando para o comportamento das pessoas, tentando compreender as ações ritualizadas, separando neófitos e veteranos naquele espaço, ensaiando níveis de previsibilidade nos contextos já familiares, buscando caminhos compreensivos para as ações das pessoas que ali estavam e, principalmente, conversando com todo mundo.


As conversas, isso é importante dizer, por vezes eram mais monólogos do que conversas em sentido estrito. O antropólogo precisa ouvir atentamente o que cada pessoa tem a dizer sobre o ambiente e sobre as atividades ali realizadas. Se as falas causam estranhamento, quanto melhor. Sem estranhamento não há antropologia. Essa é a primeira lição que qualquer aprendiz precisa aceitar.

Até ai é bê-a-bá antropológico, mas eis que surgem novas peças nesse tabuleiro: o COVID-19 e o isolamento social! Antropólogo isolado em casa é um caso sério. Vai fazer o que da vida? Vai observar o que? Vai compreender as ações de quem? Não tem jeito. A única solução possível é correr para a janela. Ou melhor, para as janelas.

Eu tenho frequentado quatro janelas simultaneamente. A da sala, a da TV, a do computador e a do celular, não necessariamente nessa ordem, e nem cada uma delas em separado. Gosto de todas, mas não no mesmo grau. Minha predileta é a da sala. Nela, observo a rua outrora movimentada e agora silenciosa, quase sepulcral à noite.

Durante o dia, o mundo ainda gira um pouquinho. As pessoas andam para lá e para cá, caminham com seus cães, compram alimentos, trabalham e se relacionam. É interessante observar que o COVID-19 passou a conviver com todos nós. Ninguém quer a presença dele, mas ele insiste em ficar. Uma das cenas que observei foi curiosa. Duas pessoas caminhavam com seus cães e cruzaram uma o caminho da outra. Não deram bola para esse encontro, até que seus cães se curtiram e quiseram se aproximar. Daí, tensão evidente. Eles não sabiam se deixavam os cães chegarem perto um do outro e trocar uns carinhos ou se seguravam suas coleiras impedindo qualquer contato. Por isso, ficaram ali, naquela dúvida. 

Quem era o quinto elemento da história? Ele! COVID-19. Dois seres humanos, dois animais e um vírus em pleno relacionamento em frente à minha janela. Incrível! O maior problema é que o vírus não falava nada, e não falará. Ele é onipresente, mas não se manifesta a não ser em silencio. Nesse caso específico, cada um seguiu com seu cão e seu COVID-19 a tiracolo, sem trocar nenhuma palavra.

Ué, mas eles estavam contaminados? Essa é a grande questão e a que menos importa. Tanto faz se estavam contaminados ou não. O COVID-19 estava ali, orientando as relações entre aquelas pessoas e aqueles animais; e o melhor que elas fizeram foi aceitar a presença dele e seguir em frente, sem toques, carinhos, abraços e trocas de telefones. Isso tudo elas deixaram para depois que o COVID-19 for embora. Uma das vantagens da antropologia é a certeza sobre certo grau de regularidade nos comportamentos humanos. Duas pessoas, no mesmo bairro, andando com seus cães em um determinado horário. É muito provável que se encontrem novamente, pós-COVID-19 e possam fazer tudo o que deixaram de fazer nesse encontro. Estou torcendo para isso, principalmente para os cães que se amaram.

Em síntese, o novo mundo está posto e temos que conviver com ele. Vale a pena abrir mão dos contatos físicos agora para que tenhamos muitos outros mais tarde. As janelas ajudam muito. Aquela invenção antiga que vínhamos usando cada vez menos também ajuda: o telefone (usado para falar, é claro!).

Para os antropólogos, o universo das interações está vivíssimo. É só reconfigurarmos o nosso olhar para o que há de novo, inclusive no mundo on line, e continuarmos observando as janelas em mosaico. Para quem quer aprender a observar, o momento também é ótimo!

Vamos aproveitar o novo mundo para aprender a viver nele!

terça-feira, 28 de janeiro de 2020

Sachsenhausen e Forte Breendonk: dois campos de concentração e uma experiência antropológica singular


Existem roteiros turísticos de todos os tipos, dos mais festivos aos mais reflexivos, passando por aqueles que eu classifico como necessários, fundamentais. Esses roteiros são os que permitem que olhemos para o passado e entendamos as tragédias que construímos. Assim, pelo menos em tese, não iremos reproduzi-las no presente e nem tampouco pensa-las como projeto de futuro.

Os campos de concentração transformados em museus fazem parte desses roteiros. Há vários espalhados pela Europa e estão lá para não deixar que a Europa – e o mundo – esqueçam da miséria que foi o nazismo, dos milhares de corpos que foram destruídos, de todas as subjetividades que foram destroçadas por um regime que transformou a destruição em massa de pessoas em objetivo fundamental da existência do próprio regime.

Eu visitei dois campos de concentração nos últimos anos. O primeiro deles foi o de Sachsenhausen, nos arredores de Berlim. O segundo, o Forte Breendonk, nos arredores da Antuérpia e de Bruxelas, na Bélgica. Ambos são museus e oferecem experiências diferentes, pautadas nas funções que aqueles espaços exerciam quando funcionavam como campos de concentração.

Sachsenhausen era um campo de “estágio” para nazistas. Não se tratava de um campo de extermínio, como Auschwitz, mas exterminou centenas e centenas de judeus e outros povos "indesejáveis". Os jovens soldados e os oficiais treinavam em Sachsenhausen para depois aplicarem as técnicas aprendidas ali nos outros campos em que fossem "trabalhar".

Seria impossível descrever em um único post todas as reflexões que a visita a esse campo proporcionou. Contarei apenas duas delas. A primeira foi a observação de um caminho de pedras totalmente irregulares. Ele está lá, e era usado para amaciar as botas dos soldados nazistas antes que fossem para a batalha. Como funcionava? Os prisioneiros eram obrigados a calcar as botas novas e caminhar durante todo o dia por essa estrada feita com pedras e outros materiais irregulares. Assim, as botas machucariam seus pés e não os dos soldados. Quando os soldados as utilizassem, já estariam amaciadas. Os prisioneiros estavam famintos, desnutridos, sem roupas adequadas para o inverno alemão, e passavam o dia caminhando, arrebentando seus pés nas botas novas para o gozo sádico de uma plateia de soldados. Esse é apenas um exemplo de algo que não tem outro nome além de atrocidade. Há vários outros, dezenas de outros exemplos.

No mesmo campo, em certo momento, ouço uma voz feminina dizendo “excuse-me”, quase ao pé do meu ouvido. Era uma mulher jovem, que deduzo ter por volta de 30 anos. O pedido de licença se dava porque eu estava atrapalhando a selfie dela. Eu estava parado, observando o cenário, e ela precisava da fotografia perfeita, sem minha presença. Ela queria que somente o seu rosto sorridente e o muro estivessem na foto. Mas que muro era esse? Sachsenhausen usou várias “técnicas” para matar judeus e outros povos que ali estavam, e uma delas era o fuzilamento. A jovem mulher queria a foto “perfeita”, sorrindo em uma fotografia com o muro de fuzilamento em que centenas de pessoas perderam a vida.

O Forte Breendonk era um campo de concentração e deportação. Era usado pelos nazistas para efetuar registros, triagens e deportar prisioneiros de todos os tipos. Isso não significa que não havia mortes, torturas e toda a miséria presente no nazismo. Pelo contrário. Também nele o gozo sádico quase não tinha limites. Limitarei meu relato a dois episódios ocorridos no mesmo espaço: a sala de tortura.

A sala de tortura era utilizada para a obtenção de informações que interessassem ao avanço do Reich. Os instrumentos estão lá, preservados, e há no áudio-guia uma descrição detalhada dos tipos de tortura ali realizados. Dentre esses horrores, chamou-me atenção a racionalidade presente naquele cenário, materializada em uma canaleta que percorria todo o espaço. A lógica era a seguinte: como os prisioneiros seriam torturados e sangrariam, era importante ter uma canaleta que concentrasse o sangue e o conduzisse para o ralo, mantendo a “higiene” do espaço.

A rotinização da morte promovida pelos nazistas já foi descrita por vários autores, dentre os principais está a Hannah Arendt. Ler seus textos é doloroso. Ver, dói mais ainda. É impossível não indagar sobre onde foi parar a humanidade daquelas pessoas.

Nesse mesmo espaço, a sala de tortura, um professor conduzia seus alunos. Iniciou uma aula sobre a sala, as torturas... No meio da aula, pegou a corda de um dos instrumentos de tortura, puxou e fez uma brincadeira. Algo do tipo, “Soyez de bons élèves, sinon...” Mais da metade da turma riu. Alguns poucos, duas meninas principalmente, manifestaram a sua indignação saindo da sala. O professor também riu da sua própria piada infame.

Vejam que tive uma experiência singular em dois campos de concentração bem diferentes. Em ambos, ao mesmo tempo em que seres humanos sentiam as dores proporcionadas pela presença em um lugar desumano como aquele, outros seres humanos desejavam fazer a selfie perfeita e piadinhas com seus alunos. Daí, juntando as duas, fiquei pensando que nesses casos é preciso escolher um lado. De qual lado você está? Quer a selfie e a piadinha? Ou prefere a vivência museológica desse horror para que a tua existência contribua para que ele nunca mais aconteça?

Eu escolhi o meu lado. Quero que minha existência contribua para que esse horror nunca mais aconteça. É por isso que estou escrevendo esse post e vou falar sobre essa experiência em todos os lugares que puder. E também não vou votar em quem defenda torturadores e fale bem de mazelas humanas.

Por outro lado, tem gente por ai que está reproduzindo cenários nazistas, vestindo-se quase como nazistas, ouvindo as músicas que eram as preferidas dos nazistas, falando como os nazistas. Esses seres humanos, se estivessem comigo em Sachsenhausen ou no Forte Breendonk, provavelmente fariam a selfie e ririam da piadinha infame do professor. E você, faria o quê?