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Sou um antropólogo brasileiro especializado em temas educacionais. Meus trabalhos focalizam as relações existentes entre a educação escolar e outras esferas da vida social. Atualmente, desenvolvo pesquisas sobre estratégias familiares e projetos de escolarização nas camadas populares das cidades do Rio de Janeiro e Petrópolis, ambas no Brasil. A abordagem inclui reflexões sobre a educação básica e o ensino superior. O debate sobre a construção social das juventudes é privilegiado porque permite interpretações refinadas sobre as relações entre educação escolar e expectativas de futuro. Trabalho no Departamento de Fundamentos da Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro-UFRJ onde ensino antropologia e sociologia da educação, além de orientar estudantes interessados no debate entre ciências sociais e educação.

sábado, 31 de julho de 2021

“Vamo tampá na porrada, moleque?!”

A sociabilidade masculina durante infância e a adolescência tem algumas questões no mínimo curiosas. É interessante observar como os meninos resolvem seus conflitos, afirmam suas masculinidades e desenvolvem gramáticas interativas recheadas de violências de todos os tipos.

O “vamo tampá na porrada, moleque?!” é um misto de interrogação e exclamação, usado em contextos nos quais a conversa dá lugar a um tipo de relação jocosa com a violência física. Tampar na porrada significa sair no braço, brigar para resolver uma querela causada por divergências sobre qualquer coisa: futebol, meninas, familiares, escolhas estéticas, tanto faz. Mas também ocorre sem que haja nenhuma querela evidente. Algo do tipo, já que não temos nada para fazer “vamo tampá na porrada, moleque?!”.

Esse tipo de relação é curioso porque à primeira vista é difícil saber se é uma briga de fato ou de brincadeira. Observar os recreios nas escolas é um belo exercício para aprender a diferenciar um e outro caso, e decifrar todos os códigos envolvidos. O mais difícil de entender é que o “vamo tampá na porrada, moleque?!” quase nunca “é a vera”. Se for, a sequência da afirmativa é “e vai ser a vera”. Nesse caso, não se trata de uma relação jocosa com a violência física. É violência mesmo, briga de fato.

Em ambos os cenários os meninos trocam socos, pontapés, rolam no chão, mas no primeiro deles todas essas ações são performatizadas. São socos e pontapés por vezes seguidos de sonoplastias que imitam prestigiosamente verdadeiros golpes, mas com uma quantidade de força que promove o toque, mas sem a possibilidade de machucar o oponente. Nos agarrões, acontece algo parecido. Gravatas, mata-leões, imobilizações são usadas para submeter o oponente e vencer a briga.

Todas essas ações têm códigos muito claros para quem as pratica. Se, por exemplo, em um mata-leão o menino subjugado diz: “tá machucando”, a “porrada” acaba na hora para não correr o risco de “ficar a vera”. Se isso ocorre, o grupo que observa intervém; todo mundo “tampa na porrada” e logo estão rindo e brincando juntos novamente.

Os motivos para “tampá na porrada” são mais ou menos legítimos dependendo do grau de agressão a certos bastiões da masculinidade. Mexer com a irmã de alguém, por exemplo, está no topo dos motivos possíveis. Nesses casos, a jocosidade começa com um “elogio” à irmã de alguém. Algo do tipo: “vi tua irmãzinha ontem. Tá crescendo. Muito gostosinha”. A sequência lógica é: “moleque, vamos tampa na porrada?!”, ao que oponente responde, por exemplo: “vai alimentando ai para mim”, que é o gatilho para tamparem na porrada.

As mães também são figuras sacrossantas. Mexer com a mãe de alguém gera porrada imediatamente, mas nesses casos tende a ser a vera e o grupo todo participa. Com as irmãs um pouco menos, primas vem na sequência, já com as amigas ocorrem variações diversas, desde tamparem na porrada imediatamente até ficarem horas citando as amigas uns dos outros como possíveis meninas que eles irão comer. Nesse caso, só tampam na porrada se algum deles estiver enamorado ou apaixonado. Daí é porrada na certa e pode até ser a vera.

O mais curioso desse fenômeno é que os conflitos esgotam-se na porrada, inclusive quando é “a vera”. Depois disso eles seguem juntos como se nada tivesse acontecido.

Eu, quando pequeno, “tampei na porrada” várias vezes, com praticamente todos os meus amigos. Naquele momento, via como algo natural. Ser menino era “tampar na porrada”, defender minha irmã, minha mãe, minhas primas de qualquer ataque jocoso feito pelos outros moleques. Porrada “a vera” foram poucas, mas ocorreram também e nunca havia ressentimentos posteriores ao ato em si. Eu também “tampava na porrada” com meu irmão caçula o tempo todo. Ele adorava “tomar umas porradas” e me provocava até que eu cedia. Hoje ele pode me provocar a vontade porque quem tomaria porrada seria eu, mas quando ele era pequenininho e até a adolescência era a nossa principal brincadeira.

Depois de velho, antropólogo em formação, fiquei muito surpreso ao ver o mesmo fenômeno nas escolas que observei. Os moleques tampavam na porrada o tempo todo e usavam exatamente os mesmos códigos de etiqueta da porrada.

Há dezenas de interpretações plausíveis sobre esse fenômeno. É possível argumentar que trata-se de uma cultura masculina de entendimento dos corpos – do eu e do outro; que é uma forma de referendar masculinidades hegemônicas bem ao estilo mediterrâneo; que as “porradas” fundamentam visões de mundo com claras divisões de gênero nas quais os homens têm que proteger as mulheres que amam; que as “porradas” cimentam laços sociais e afetivos entre os meninos porque “não dá pra confiar em alguém com quem você nunca tampou na porrada”. Enfim, são muitas interpretações possíveis, inclusive várias outras para além dessas.

Estou escrevendo esse post porque eu realmente achava que com a progressiva relativização das fronteiras de gênero o fenômeno do “tampa na porrada” cairia em desuso. Ocorre que outro dia, na pracinha aqui perto de casa, observei dois meninos caminhando com seus skates na mão. Pareciam irmãos, mas não sei se eram. O menor, do nada, deu um chute no skate do maior, que caiu no chão. Imediatamente, o maior disse: “Vamo tampá na porrada, moleque?!”, deu-lhe uma gravata e performatizou vários socos no estômago do menorzinho.

Ali pertinho, duas velhinhas se entreolharam. Uma gritou: “para com isso, menino. Vai machucar”. E a outra respondeu: “que nada, tão só brincando. É coisa de menino”.

Não sei se hoje o “vamo tampá na porrada” é só coisa de menino. Pode ser que as meninas também estejam tampando na porrada por aí; mas parece-me que entre meninos, adolescentes e também entre homens adultos, que foram meninos e por vezes o repetem, inclusive com seus filhos, ele permanece como um dos rituais de masculinidade mais constantes.  

Observando tudo isso, penso que há algo muito interessante para se pensar nesse ritual. A “porrada”, nesses casos, só promove a paz. Quando ela acaba, acabou a guerra. Daí ficam duas questões. Por que os meninos precisam tanto desse diálogo violento para se afirmarem como homens? E quais são os elementos que encerram o conflito assim que acabaram de “tampar na porrada”? São boas questões, mas em certa medida extrapolam os limites da abordagem antropológica. Deixo-as aqui para pensarmos juntos.