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Sou um antropólogo brasileiro especializado em temas educacionais. Meus trabalhos focalizam as relações existentes entre a educação escolar e outras esferas da vida social. Atualmente, desenvolvo pesquisas sobre estratégias familiares e projetos de escolarização nas camadas populares das cidades do Rio de Janeiro e Petrópolis, ambas no Brasil. A abordagem inclui reflexões sobre a educação básica e o ensino superior. O debate sobre a construção social das juventudes é privilegiado porque permite interpretações refinadas sobre as relações entre educação escolar e expectativas de futuro. Trabalho no Departamento de Fundamentos da Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro-UFRJ onde ensino antropologia e sociologia da educação, além de orientar estudantes interessados no debate entre ciências sociais e educação.

segunda-feira, 6 de setembro de 2021

Dona Lilica, a “mãozinha boa” e a opressão dos corpos na escola.

A transição da segunda para a terceira-série do primário era um momento importante para as crianças da minha geração. Atualmente essa terminologia não existe mais. Optei por mantê-la pelo fato de o texto tratar de um tempo histórico específico. Nós nos sentíamos grandes e iríamos para uma série que era “muito mais difícil do que as anteriores. As mães ficavam nervosas com isso e havia muita ansiedade para saber em qual turno e qual turma cada criança iria estudar.

Na minha escola, havia um “problema extra”. Todas as mães ficavam preocupadas com a possibilidade de os filhos irem para a turma da Dona Lilica. Dona Lilica é um nome fictício que estou usando aqui para contar essa história. Tratava-se de uma professora que tinha fama de má. Dizia-se que ela era formada em matemática e não admitia que nenhuma criança fosse aprovada sem que tivesse aprendido tudo o que ela tinha a ensinar. Eu realmente não sei se ela era formada em matemática. Era incomum na época ter professoras com uma formação diferente do normal e/ou da pedagogia, mas no imaginário da escola, sim, ela era a matemática.

Eis que quando fui enturmado lá estava eu na turma da Dona Lilica. Minha mãe ficou nervosa, conversou comigo. Minha tia, mãe de uma das minhas primas que estudava na mesma escola também ficou assustada e conversou com a minha mãe e comigo. Caramba! Agora não tinha jeito. Eu seria um aluno da Dona Lilica.

Fiquei apavorado! Além de ter que cursar a terceira-serie, ainda seria aluno da dona Lilica. Lembro-me de que as férias passaram e lá fui eu com meu uniforme novo, sapato vulcabraz 757 engrachadinho, cabelo cortado a contragosto em direção à turma.

Logo no primeiro dia cometi um erro crasso. Antes de qualquer coisa Dona Lilica perguntou quem ali era repetente. Eu não sabia o que era ser repetente. Levantem a mãos aqueles que não são repetentes, disse Dona Lilica. Fiquei lá com a mão abaixada.

Bom, vocês que são repetentes, saibam que não vão passar de ano só porque são repetentes. Eu não quero saber. Aqui, ou aprende ou não aprende, vociferava Dona Lilica no auge de sua cátedra. Daí perguntei para o colega ao lado, que era repetente, o que era isso, afinal. Ele me explicou e eu levantei a mão para desfazer o erro. A resposta de Dona Lilica foi a seguinte: você está bem, heim, grandão. Eu tinha, naquela época, quase a altura de Dona Lilica. Não sabe nem mesmo se é ou não repetente. Grande, grande e bobo desse jeito.

Depois de tamanha acolhida, começamos com a aula do dia, que era exatamente de matemática. Logo no primeiro dia! Eu já estava nervoso e fiquei mais ainda quando ouvi: você, grandão, explique aí como se monta uma divisão com três algarismos. Você fala e eu escrevo. Gaguejei solenemente por alguns segundos e Dona Lilica finalizou: era o que eu esperava mesmo. Pode até não ser repetente, mas não sabe nada. Na verdade, ninguém sabia. Ninguém tinha aprendido ainda, mas a turma permaneceu em silêncio como se dominasse plenamente a operação. Mesmo assim, lá foi Dona Lilica retomar o conceito de divisão para depois iniciar a discussão sobre divisão com 3 algarismos.

Meu maior problema com Dona Lilica, no entanto, não foi a matemática. A questão toda era minha mão. Eu tinha uma mão ruim na perspectiva dela. Uma das minhas mãos era ruim porque a outra era boa, a “mãozinha boa”. Certa vez ela me chamou para receber uma das atividades que ela tinha corrigido. Quando cheguei em sua mesa, estendi a mão esquerda e ela me disse: “essa não, menino. Pegue com a mãozinha boa”. Realmente não entendi do que se tratava, mas a “mãozinha boa” só podia ser a direita porque eu só tinha duas. Estiquei a mão direita e ela me entregou a tarefa.

Eu não sabia bem o que estaca acontecendo. Anos mais tarde, descobri que eu tinha uma tendência a ser ambidestro. Eu usava as duas mãos indiscrimidadamente, inclusive para pintar, escrever, etc, e isso era inconcebível para Dona Lilica. Ela logo entendeu que minha letra era horrível por conta de eu usar às vezes a “mão ruim”. Logo, eu tinha que aprender a usar somente a “mãozinha boa”. Ela chamou minha mãe para conversar e disse: a letra desse menino é uma porcaria. Ninguém entende nada. Compre um caderno de caligrafia para ele e eu vou passar exercícios de caligrafia todos os dias e ele só pode fazer com a “mãozinha boa”. Nem minha mãe entendeu aquilo até que Dona Lilica puxou minha “mãozinha boa” e disse: “essa aqui é a mãozinha boa. Só pode escrever com essa”

Eu fiquei muito encucado com aquilo. Por que, afinal, a minha mão esquerda era tão ruim? Ela nunca tinha feito nada contra a Dona Lilica. E mesmo assim era permanentemente torturada! “coloca essa mão ruim para trás, menino. Aqui, só com a mãozinha boa”.

E lá fomos nós, um longo ano em que a pobre coitada da minha mão esquerda fora oprimida na sala de aula da Dona Lilica. No final das contas, a minha letra continuou horrorosa, é assim até hoje. Eu passei de ano mesmo assim, e o que aconteceu é que minha mão esquerda ficou de escanteio. Acabei destro para a maioria das tarefas.

É curioso porque muitos anos depois eu tive contato com a obra do Robert Hertz, que escreveu um texto com o sugestivo título: “a preeminência da mão direita: um ensaio sobre a polaridade religiosa”. Ele foi um sociólogo francês que morreu em serviço na primeira guerra mundial e teve, por isso, sua carreira interrompida. Ele nos deixou esse belíssimo texto no qual ele explica toda a cosmologia relacionada às oposições entre as mãos direita e esquerda. No ensaio, ele critica severamente quaisquer explicações meramente biológicas para o uso majoritário da mão direita e descreve todo o universo sociocultural representado por essa oposição entre as mãos. Quando o li, ainda na graduação, lembrei-me de Dona Lilica.

Hoje, na pandemia, decidi ver se eu ainda conseguiria escrever e pintar com a mão esquerda. Faço diversas coisas com ela, mas não essas duas. Conversei muito com minha mão para livrá-la do trauma de ter sido estigmatizada como uma mão ruim. Ela já elaborou tudo e está até conseguindo escrever algumas coisinhas, mas com muita dificuldade. Infelizmente, a crença de Dona Lilica na existência de uma “mãozinha boa” em posição superior à “mãozinha ruim” contribuiu para que eu abandonasse todas as possibilidades trazidas pela ambidestria. Acredito que eu teria acessado outros processos cognitivos caso tivesse investido nas possibilidades da minha “mãozinha ruim” ao invés de oprimi-la e estigmatizá-la.

Enfim, não culpo ninguém. Nem mesmo Dona Lilica. Meu irmão caçula mais tarde conviveu com a Dona Lilica também. Ele, que sempre foi bem menos obediente do que eu, levava a Dona Lilica no bico o tempo todo. Ela o adorava e era outra mulher também. Não sei o que aconteceu de bom na vida dela, mas algo aconteceu. Ela nem mesmo era chamada de Dona Lilica. Tinha abandonado o nome em prol de um doce apelido, que não poderei contar aqui para não denunciá-la.

E por que não vou denunciá-la? Simplesmente porque não foi só culpa dela. Como o próprio Hertz explica, a polaridade esquerda versus direita quando se trata das mãos não tem nada de natural. É social. Dona Lilica fora totalmente doutrinada por esse universo social dividido e não conseguiu sair dele. Também parece-me muito evidente que ela nunca lera o Hertz. Fica a dica!

Deixo aqui um beijo para a senhora, Dona Lilica. A senhora deve estar bem velhinha. Por isso, deixo também um afago na cabeça, mas feito com a “mãozinha ruim”. Espero que a senhora goste!

 

 

 

 


sábado, 31 de julho de 2021

“Vamo tampá na porrada, moleque?!”

A sociabilidade masculina durante infância e a adolescência tem algumas questões no mínimo curiosas. É interessante observar como os meninos resolvem seus conflitos, afirmam suas masculinidades e desenvolvem gramáticas interativas recheadas de violências de todos os tipos.

O “vamo tampá na porrada, moleque?!” é um misto de interrogação e exclamação, usado em contextos nos quais a conversa dá lugar a um tipo de relação jocosa com a violência física. Tampar na porrada significa sair no braço, brigar para resolver uma querela causada por divergências sobre qualquer coisa: futebol, meninas, familiares, escolhas estéticas, tanto faz. Mas também ocorre sem que haja nenhuma querela evidente. Algo do tipo, já que não temos nada para fazer “vamo tampá na porrada, moleque?!”.

Esse tipo de relação é curioso porque à primeira vista é difícil saber se é uma briga de fato ou de brincadeira. Observar os recreios nas escolas é um belo exercício para aprender a diferenciar um e outro caso, e decifrar todos os códigos envolvidos. O mais difícil de entender é que o “vamo tampá na porrada, moleque?!” quase nunca “é a vera”. Se for, a sequência da afirmativa é “e vai ser a vera”. Nesse caso, não se trata de uma relação jocosa com a violência física. É violência mesmo, briga de fato.

Em ambos os cenários os meninos trocam socos, pontapés, rolam no chão, mas no primeiro deles todas essas ações são performatizadas. São socos e pontapés por vezes seguidos de sonoplastias que imitam prestigiosamente verdadeiros golpes, mas com uma quantidade de força que promove o toque, mas sem a possibilidade de machucar o oponente. Nos agarrões, acontece algo parecido. Gravatas, mata-leões, imobilizações são usadas para submeter o oponente e vencer a briga.

Todas essas ações têm códigos muito claros para quem as pratica. Se, por exemplo, em um mata-leão o menino subjugado diz: “tá machucando”, a “porrada” acaba na hora para não correr o risco de “ficar a vera”. Se isso ocorre, o grupo que observa intervém; todo mundo “tampa na porrada” e logo estão rindo e brincando juntos novamente.

Os motivos para “tampá na porrada” são mais ou menos legítimos dependendo do grau de agressão a certos bastiões da masculinidade. Mexer com a irmã de alguém, por exemplo, está no topo dos motivos possíveis. Nesses casos, a jocosidade começa com um “elogio” à irmã de alguém. Algo do tipo: “vi tua irmãzinha ontem. Tá crescendo. Muito gostosinha”. A sequência lógica é: “moleque, vamos tampa na porrada?!”, ao que oponente responde, por exemplo: “vai alimentando ai para mim”, que é o gatilho para tamparem na porrada.

As mães também são figuras sacrossantas. Mexer com a mãe de alguém gera porrada imediatamente, mas nesses casos tende a ser a vera e o grupo todo participa. Com as irmãs um pouco menos, primas vem na sequência, já com as amigas ocorrem variações diversas, desde tamparem na porrada imediatamente até ficarem horas citando as amigas uns dos outros como possíveis meninas que eles irão comer. Nesse caso, só tampam na porrada se algum deles estiver enamorado ou apaixonado. Daí é porrada na certa e pode até ser a vera.

O mais curioso desse fenômeno é que os conflitos esgotam-se na porrada, inclusive quando é “a vera”. Depois disso eles seguem juntos como se nada tivesse acontecido.

Eu, quando pequeno, “tampei na porrada” várias vezes, com praticamente todos os meus amigos. Naquele momento, via como algo natural. Ser menino era “tampar na porrada”, defender minha irmã, minha mãe, minhas primas de qualquer ataque jocoso feito pelos outros moleques. Porrada “a vera” foram poucas, mas ocorreram também e nunca havia ressentimentos posteriores ao ato em si. Eu também “tampava na porrada” com meu irmão caçula o tempo todo. Ele adorava “tomar umas porradas” e me provocava até que eu cedia. Hoje ele pode me provocar a vontade porque quem tomaria porrada seria eu, mas quando ele era pequenininho e até a adolescência era a nossa principal brincadeira.

Depois de velho, antropólogo em formação, fiquei muito surpreso ao ver o mesmo fenômeno nas escolas que observei. Os moleques tampavam na porrada o tempo todo e usavam exatamente os mesmos códigos de etiqueta da porrada.

Há dezenas de interpretações plausíveis sobre esse fenômeno. É possível argumentar que trata-se de uma cultura masculina de entendimento dos corpos – do eu e do outro; que é uma forma de referendar masculinidades hegemônicas bem ao estilo mediterrâneo; que as “porradas” fundamentam visões de mundo com claras divisões de gênero nas quais os homens têm que proteger as mulheres que amam; que as “porradas” cimentam laços sociais e afetivos entre os meninos porque “não dá pra confiar em alguém com quem você nunca tampou na porrada”. Enfim, são muitas interpretações possíveis, inclusive várias outras para além dessas.

Estou escrevendo esse post porque eu realmente achava que com a progressiva relativização das fronteiras de gênero o fenômeno do “tampa na porrada” cairia em desuso. Ocorre que outro dia, na pracinha aqui perto de casa, observei dois meninos caminhando com seus skates na mão. Pareciam irmãos, mas não sei se eram. O menor, do nada, deu um chute no skate do maior, que caiu no chão. Imediatamente, o maior disse: “Vamo tampá na porrada, moleque?!”, deu-lhe uma gravata e performatizou vários socos no estômago do menorzinho.

Ali pertinho, duas velhinhas se entreolharam. Uma gritou: “para com isso, menino. Vai machucar”. E a outra respondeu: “que nada, tão só brincando. É coisa de menino”.

Não sei se hoje o “vamo tampá na porrada” é só coisa de menino. Pode ser que as meninas também estejam tampando na porrada por aí; mas parece-me que entre meninos, adolescentes e também entre homens adultos, que foram meninos e por vezes o repetem, inclusive com seus filhos, ele permanece como um dos rituais de masculinidade mais constantes.  

Observando tudo isso, penso que há algo muito interessante para se pensar nesse ritual. A “porrada”, nesses casos, só promove a paz. Quando ela acaba, acabou a guerra. Daí ficam duas questões. Por que os meninos precisam tanto desse diálogo violento para se afirmarem como homens? E quais são os elementos que encerram o conflito assim que acabaram de “tampar na porrada”? São boas questões, mas em certa medida extrapolam os limites da abordagem antropológica. Deixo-as aqui para pensarmos juntos.


sábado, 26 de junho de 2021

O mundo inteiro cabe num abraço

Eu sou um bom abraçador. Gosto sempre de abraçar as pessoas queridas e até mesmo aquelas que acabei de conhecer. Por vezes as pessoas estranham. Afinal, quem é esse cara que mal me conhece e chega me abraçando?!

Há diversos tipos de abraços, é claro. Desde os mais formais, aqueles em que os corpos mal se encostam e terminam com batidinhas de mãos nas costas, até aqueles mais tesudos, em que os corpos se colam e as mãos aproveitam para das uma espiada no corpo alheio, tentando comprovar o que os olhos já viram ao sentir as texturas da pele, calores, odores e por aí vai. Enfim, nesse gradiente há dezenas de tipos de abraços e nós, brasileiros, em geral já provamos de todos eles.

A pandemia trouxe uma coisa muito esquisita. Agora encontramos pessoas queridas e não as abraçamos. Trocamos soquinhos com as mãos, damos tchauzinhos, jogamos beijinhos ao ar, fazemos movimentos meio esdrúxulos com o corpo inteiro sem bem saber como demostrar o quão felizes nós estamos ao encontrar aquela pessoa.

Eu tenho observado esses encontros com muita atenção. Outro dia, em uma praça aqui pertinho de casa, duas senhoras se encontraram. Deram um grito e quase pularam uma para cima da outra. Foi tão interessante observar porque elas fizeram dezenas de movimentos com seus corpos. Pularam, ergueram as mãos, se auto-abraçaram como se se abraçassem, jogaram beijinhos, mexeram nos cabelos e aquela dança durou uns bons segundos. Depois começaram a conversar, falaram dos filhos – que as proibiam de fazer qualquer coisa além de todos aqueles gestos corporais quando encontravam alguém na rua – falaram da pandemia, das saudades, da vida “perdida”, do isolamento. Sim! Eu ouvi tudo! Não me meti na conversa delas, mas elas falavam em volume considerável e eu apenas fiquei ali sentado e ouvindo o quanto as senhoras odiavam seus filhos. Elas os odiavam e amavam porque sabiam que todas aquelas proibições eram simplesmente fruto do cuidado, do carinho e de um medo danado de perderem suas mães para a COVID.

As duas senhoras são um exemplo dos muitos encontros que presenciei enquanto observo as nossas ruas pandêmicas. Por que será que os abraços e o contato corporal nos fazem tanta falta? É claro que há muito de cultura nisso. Vários antropólogos já demonstraram o quanto essas interações são marcadas pela cultura. Vejam, por exemplo, o brilhante artigo escrito por Michel Bozon e Maria Luiza Heilborn – "As carícias e as palavras: iniciação sexual no Rio de Janeiro e em Paris", disponível aqui: http://www.clam.org.br/bibliotecadigital/uploads/publicacoes/as%20caricias%20e%20asa%20palavras%20q1.pdf . Eles me ajudam a dizer que há povos mais e menos abraçadores e acariciadores, tanto no mundo público quanto no universo privado.

De qualquer forma, por aqui, em geral, gostamos muito de um abraço, de um amasso, de um sarro e fazemos isso no mundo público e no mundo privado quase sem quaisquer constrangimentos. Mas agora não podemos, pelo menos não podemos com todo mundo como fazíamos antes. Ops! Lembrem-se das gradações. Nem todo mundo recebe abraço formal e nem todo mundo recebe abraço com amasso. Isso varia infinitamente de pessoa para pessoa e da gramática dos desejos que nos orienta diariamente. Estou fazendo essa ressalva para não pensarem que vejo o Brasil como o país onde todo mundo é amassador e sarrador de todo mudo. Eu jamais diria isso! Há muitos e muitos abraços singelos, fraternos, carinhosos e por aí vai...

Eu espero que essa pandemia acabe logo para que possamos distribuir abraços aleatoriamente, sem qualquer restrição, e todos os tipos de abraços. Seja lá qual for o tipo que você venha a oferecer ou receber, sempre cabe um mundo ali dentro daqueles braços e corpos emaranhados. Um mundo que dura um instante, mas que nos desloca das durezas da vida para a plenitude daquele momento.

Enquanto não dá para abraçar todo mundo, abrace quem dá! Eu vou abraçar todo mundo que ler esse post, mas por enquanto só virtualmente!

Um abração para todo mundo!!!

 

 

 

 

 

 

domingo, 6 de junho de 2021

As prisões simbólicas dos nossos mundos internos

Semana passada meu grupo de pesquisa discutiu um texto sobre as juventudes pobres. Ele foi escrito por um grupo de pesquisadores e tem como autor principal o Robert McDonald, um professor de Educação e Justiça Social do Huddersfield Centre for Research in Education and Society (HudCRES), da University of Huddersfield. Tracy Shildrick, Colin Webster e Donald Simpson são co-autores do artigo. Na época em que foi escrito todos estavam na University of Teesside.

O titulo do artigo é bastante sugestivo com relação à proposta. Chama-se “Growing Up in Poor Neighbourhoods: The Significance of Class and Place in the Extended Transitions of ‘Socially Excluded’Young Adults”. As referências completas seguem-no final do post.

Os autores apresentam uma pesquisa qualitativa longitudinal realizada com jovens europeus durante os períodos de transição entre a escola e o trabalho. São jovens pobres, que cresceram em zonas e ambientes pauperizados em termos materiais e estão transitando progressivamente da heteronomia infantil para a autonomia trazida pela chegada ao mundo adulto.

O texto apresenta dados importantes da pesquisa e lança um argumento central. Qual seja: de que jovens que nascem e crescem em comunidades pauperizadas podem vir a negar oportunidades de mobilidade social para si mesmos por conta da força dos laços que desenvolveram com suas comunidades durante toda a vida. Não bastaria, portanto, que a sociedade oferecesse oportunidades educacionais. Ela teria também que, em certa medida, preparar os jovens para os custos – afetivos, psicológicos e simbólicos – trazidos quando da opção individual pelo uso dessas oportunidades.

A vida comunitária – como as ciências sociais já demonstraram largamente – cria uma série de coisas. Dentre elas, duas são principais: o senso de pertencimento e a segurança subjetiva trazida pela permanência na zona de conforto criada pela socialização na própria comunidade. Essa regra vale para qualquer comunidade, inclusive as localizadas em zonas pauperizadas como aquelas que foram estudadas por McDonald. Os relatos dos jovens são singulares com relação a isso. Eles identificam todos os problemas presentes em suas comunidades, mas indicam que são problemas conhecidos e sob os quais eles têm algum nível de controle. Por isso, viver naquela localidade é ruim e muito bom. É ruim porque há problemas e muito bom porque eles estão seguros mesmo em meio àquele conjunto de problemas.

As falas dos jovens, homólogas àquelas anunciadas por vários jovens que entrevistei no Brasil, apontam o quanto é difícil mergulhar e um processo de individuação enquanto toda a cultura na qual foram socializados é orientada pelo contrário: por existências coletivizadas ao ponto de as individualidades serem reduzidas ao mínimo.

Os laços simbólicos que amarram os jovens às suas comunidades por vezes colocam-se como verdadeiras prisões subjetivas. São subjetivas exatamente porque não há nenhuma grade concreta os impedindo de romper com o circuito de reprodução daquela cultura coletivista em direção à uma cultura individualista. Mas embora não sejam concretas, tais grades os prendem e fazem com que até mesmo sonhos alimentados durante toda a infância sejam abandonados em prol da vida coletiva, da manutenção do reconhecimento de pertencimento àquela comunidade e da proteção trazida por todos os laços materiais e simbólicos ali presentes.

A opção pelo mergulho em processos de individuação envolve muitas dores e muitas delícias. Há também culturas que, ao contrário, enfatizam a individuação como o caminho mais legítimo para a vida adulta e elas também trazem dilemas, principalmente quando os jovens “prefeririam” a experiência coletiva em detrimento da individual.

Individuação e coletivização são duas forças divergentes e todos nós traçamos nossos caminhos – nos limites da individualidade de nossas escolhas – entre uma força e outra, mais ou menos afetados por uma ou outra. Casamento, parentalidade, trabalho, educação, migração são fenômenos sociais diretamente afetados pela tensão entre essas duas forças.

Casar ou estudar? Ter filhos ou apostar na carreira? Construir uma casa junto aos pais e à família extensa ou abandonar o bairro onde nasceu e construir uma casa sem laços com a parentela? Concluir a faculdade (ou a escola) e aposentar o diploma ou permanecer na luta para reconhecimento no campo profissional para o qual foi formado? Ou tentar articular dois caminhos aparentemente antagônicos na medida exata do que é possível fazer?

Todas essas questões afligem jovens do mundo inteiro e o fato mais concreto é que elas não têm uma resposta para além dos resultados efetivos trazidos pelas escolhas dos jovens. Não há nada além de expectativas quando um jovem opta por um ou outro caminho. Seja lá qual for a opção, em geral ela é pautada por expectativas positivas com relação ao futuro, mas sempre consideram – em alguma medida – níveis possíveis de fracasso. O maior problema que se coloca para os jovens que cresceram em comunidades pauperizadas é que se eles optarem pela individuação as chances de fracasso sempre parecem maiores. Não são necessariamente, mas parecem. Por outro lado, se optarem por aquilo que as suas comunidades pensaram para eles, as chances de sucesso são aparentemente muito maiores exatamente porque o sucesso é simplesmente a manutenção do reconhecimento e do pertencimento àquela comunidade. Esse sucesso também não é, necessariamente, garantido, mas é lido como se fosse. Permanecer junto à família e a comunidade de origem aparentemente garantirão níveis de sucesso e felicidade individual, mas isso não é nada além de expectativa.

Qual o preço individual que você que aguentou essa leitura até aqui está disposto ou disposta a pagar para mergulhar em um processo de individuação? E o preço para aceitar passivamente aquilo que sua comunidade quer fazer de você? Em ambos os casos há dores e delícias.

O mais legal do texto do McDonald e de tantos outros antropólogos e sociólogos que escreveram sobre essa temática é perceber que ninguém que passa por esses dilemas está sozinho. São todos dilemas da juventude e a juventude é vivida coletivamente. Em síntese, por mais que seu sofrimento subjetivo pareça imenso, tem um jovem ou uma jovem do seu lado sofrendo em proporção equivalente. E nesse caso, como dizemos aqui no Rio de Janeiro, sempre vale a pena trocar uma ideia.

Referências completas do artigo:

Macdonald, R., Shildrick, T., Webster, C., & Simpson, D. (2005). Growing Up in Poor Neighbourhoods: The Significance of Class and Place in the Extended Transitions of ‘Socially Excluded’Young Adults. Sociology, 39(5), 873-891. https://doi.org/10.1177/0038038505058370

 


quarta-feira, 14 de abril de 2021

Humanos, demasiadamente humanos, por: Rogério Ferreira de Souza

 O texto abaixo é o relato da experiência vivida pelo meu querido amigo Rogério Ferreira de Souza. Ele travou uma tremenda batalha com a COVID e felizmente venceu. No relato, expressa as emoções vividas e salienta a potência do trabalho de todos os profissionais que vivem no dia a dia a tarefa hercúlea de salvar vidas. Sigamos para o texto porque ele dispensa quaisquer comentários. 

Humanos, demasiadamente humanos

Rogério Ferreira de Souza

Doutor em Sociologia - Professor e Coordenador do Programa de Pós Graduação em Sociologia Política IUPUERJ-Universidade Candido Mendes e  Coordenador do Comitê de Pesquisa “Memória e Sociedade” junto à Sociedade Brasileira de Sociologia.

Ao longo de grandes catástrofes, ou dos acidentes coletivos que nos atingem, muitas vezes de forma inesperada, testemunhamos o trabalho de bombeiros, policiais, médicos e uma gama de outros profissionais prontos a agir para salvar vidas—ainda que muitas vezes coloquem as suas próprias  em perigo. Por isso, não é raro que os denominemos “heróis”, sobre-humanos, elevando-os à categoria de seres extraordinários, quase como se fizessem parte de outro mundo que não este nosso, tão humano, em que vivemos.

Durante a pandemia de Covid-19, essa condição sobre-humana que conferimos àqueles que se dispõem a zelar e a salvar nossas vidas tem se evidenciado ainda mais. Costumamos referirmo-nos a eles como os “profissionais da linha de frente”, e, dentre estes, principalmente os profissionais de saúde intensivistas, que atuam incansavelmente nos CTI’s (ou UTI’s) de todo o país, como “heróis”. Ali, esses profissionais se revezam para manter o tratamento dos doentes full time; para eles, cada vida importa e cada vida é festejada quando o sucesso da recuperação se concretiza; a recuperação, sabem eles, é a verdadeira recompensa de seu trabalho árduo!

Durante a primeira onda da pandemia no país, em 2020, junto com Paulo Gajanigo, professor e pesquisador da Universidade Federal Fluminense, desenvolvemos uma pesquisa sobre relatos do cotidiano durante o confinamento e a nova rotina que nos foram impostos pela pandemia. Nessa pesquisa, publicada com o título “A pandemia e o ordinário: apontamentos sobre a afinidade entre experiência pandêmica e registros cotidianos”, analisamos como as pessoas experimentavam e relacionavam suas rotinas com as mudanças advindas do isolamento social e do aumento no número de casos e vítimas de Covid-19.

Àquela altura, mal podia imaginar que passaria, em 2021, de pesquisador a objeto de pesquisa. Há coisa de meses, fui diagnosticado com Covid-19 e devido a um quadro que se agravou, precisei ser internado e intubado em um hospital privado no Rio de Janeiro, e passei vários dias no CTI. Esta, sem dúvida, foi a mais terrível  experiência de confronto com a morte que vivi até hoje. E foi ali, em meio a esse confronto, ao retomar a consciência depois de dez dias intubado, que meu empuxo de pesquisador me levou a observar, com esmero, o conjunto de procedimentos e atividades necessários à reabilitação de pacientes que partilham comigo a experiência desse confronto.

Esta condição, ora de paciente, ora de observador, permitiu-me acompanhar a rotina de dentro do CTI, quase como se fosse mesmo um “trabalho de campo”. Das atividades mais simples às mais complexas — todas igualmente importantes porque, sim, no CTI, tudo é importante! — o que via não eram aqueles “heróis” entronizados pela cultura do individualismo. Havia, ali, uma visão de conjunto, um coletivo de humanos, demasiadamente humanos — e demasiadamente trabalhadores —, empenhados em seu labor, dedicando-se ao máximo para fazer o melhor e da melhor forma possível. Ali, nada pode dar errado, qualquer erro pode ser fatal.

Nas conversas que tive com aqueles profissionais—exímios profissionais!—pude ver, no entanto, que ali havia, de fato, mais do que trabalho técnico; havia mesmo uma partilha de afetos de profissional para profissional, de profissional para pacientes. Como resultado, vi uma síntese entre a boa, isto é, a melhor execução possível do trabalho técnico, conjugada ao mais afetuoso convívio entre a equipe profissional e os pacientes.

Foi aquele convívio afetuoso que pôde reforçar, para mim, a importância do trabalho como construção do ser social; só uma compreensão desse tipo pode contribuir para  uma sociedade mais justa, edificante, menos desigual.

Diante dos descaminhos e tropeços da política governamental no que diz respeito ao combate à pandemia, é necessário reconhecer, mais do que nunca, que, a despeito da precarização do trabalho, da dupla (e às vezes tripla) jornada desses profissionais, da péssima remuneração e outros tantos fatores, a estes profissionais, não lhes falta o que há (ou deveria haver) de mais especial em cada um de nós: humanidade. Diante deles, não estamos diante de “heróis”, mas de humanos, demasiadamente humanos, para os quais o valor do trabalho reside na certeza de que cada vida, por mais custoso que isto lhes seja, vale a pena. E como vale!

 

 


sábado, 10 de abril de 2021

"Os crentes" e a sociabilidade na infância. Afinal, quais são os seus outros?

A antropologia preocupa-se com a construção de um saber em total interação com os “outros” do antropólogo. Esses outros podem estar em culturas distantes daquela em que o antropólogo está inserido ou pertencerem “à mesma” cultura do antropólogo. Tanto faz! A clássica discussão realizada entre o Roberto da Matta e o Gilberto Velho sobre familiaridade, exotismo e distanciamento da conta de explicar as dinâmicas etnográficas num ou noutro caso. 

O que desejo nesse post é contar uma história da minha infância. Durante a pandemia eu tenho feito longos exercícios de memória com o objetivo de reconstruir a minha trajetória social e cultural. É claro que tenho plena ciência de que esses exercícios promovem apenas recortes e releituras de memórias passadas, mas são interessantes, inclusive, para pensar em questões chave do pensamento antropológico e das experimentações etnográficas. 

Eu vivi até os 14 anos em uma rua incrustrada na mata atlântica, na famosa região chamada de serra velha da estrela, em Petrópolis. Era uma rua composta exclusivamente por casas, sem nenhum edifício; e todo mundo conhecia todo mundo. As crianças brincavam juntas e vários rituais – aniversários, casamentos, cerimônias religiosas – eram vividos por quase todos em conjunto. O “quase” da frase anterior é o ponto que desejo discutir aqui. 

Naquela rua havia uma parte de católicos praticantes, outra de “católicos umbandistas”, outra de umbandistas e também “os crentes”. Os “católicos umbandistas” eram aqueles que praticavam as duas religiões simultaneamente. Desde já peço desculpas aos meus amigos sociólogos e antropólogos da religião por essa simplificação grotesca, mas ela é adequada apenas para os limites desse post. 

Eu estava entre os “católicos umbandistas”. Minhas duas avós representavam essas duas vertentes religiosas presentes na construção da minha pessoa. Uma delas era católica apostólica romana praticante. A outra também era católica, mas frequentava centros de umbanda e participava de todos os rituais. Com isso, eu criança ficava lá e cá. Frequentava as missas, os rituais nos terreiros, as festas da igreja, as festas de santo e navegava com tranquilidade por todos esses espaços. 

Católicos e “católicos umbandistas” conviviam com certa serenidade, frequentavam-se, conversavam, trocavam presentes, abençoavam uns aos outros, cuidavam mutuamente das crianças, rezavam ou benziam as crianças vitimadas com “mau-olhado”. Por isso, nós, as crianças, crescíamos nesse ambiente repleto de diversidade religiosa e cultural; e construíamos nossas subjetividades nesse contexto, o que contribuía para que respeitássemos uns aos outros e gostássemos dessas diferenças. 

Mas com “os crentes” era diferente. Era assim que nós chamávamos os evengélicos. Eles eram "os crentes”. Hoje vejo que tratava-se de uma categoria englobante e estigmatizadora que reduzia aquele conjunto de pessoas ao seu pertencimento religioso, que nem sabíamos bem qual era. 

“Os crentes” viviam em três casas na rua. Uma logo no começo e outras duas bem no finalzinho, perto da minha, que era a última casa da rua. Meu olhar de criança os estranhava muito, principalmente as mulheres e as meninas porque usavam sempre vestidos ou saias longuíssimos, até os calcanhares, cabelos também longuíssimos, até a cintura. As meninas nunca falavam comigo ou com os outros meninos e nunca, em nenhuma hipótese, brincavam na rua. Viviam em casa e naquela época eu pensava: o que será que elas fazem dentro de casa o dia inteiro? Na verdade, até hoje penso nisso. 

Houve, durante toda a minha infância, pouquíssimos encontros com “os crentes”. Vou contar um deles para deixar claros os níveis de estranhamento e evitação presentes naquele contexto. Era um período de festas de Cosme e Damião. Nessas festas, as famílias se organizam para distribuir doces para as crianças, dados em homenagem aos orixás crianças, presentes na umbanda e também no candomblé. As crianças ficavam em polvorosa – naquela época não havia ainda a crítica ao consumo excessivo de açúcar entre crianças – e corriam para lá e para cá atrás dos doces. 

Eu era pequeno, talvez tivesse uns 10 ou 11 anos. Estava comendo uns doces em frente à varanda de uma das casas da rua. Lá dentro, estava uma das famílias crentes. A mãe, o pai e um dos filhos, que tinha idade aproximada à minha. Eles estavam em uma das casas católicas da rua não sei bem por quais motivos. O menino, quando me viu comendo os doces, olhou e arregalou os olhos. Eu entendi como um pedido, do tipo “me dá um aí”. Imediatamente peguei um dos doces e estendi a mão para entregar a ele. Ele veio correndo em direção ao doce até que a mãe o segurou pela gola da camisa e disse: “não! Já falei que não! Isso não pode. Você não pode comer essas coisas ruins!”. O menino arregalou os olhos, bateu o pé, verteu algumas lágrimas em silêncio e aceitou seu destino resignadamente. Ele não comeria os doces. 

A católica, dona da casa, que me conhecia desde que eu tinha nascido, fez um sinal para eu ir embora e voltar depois. Eu entendi e segui pensando. Eu olhava para os doces, eu me lembrava da cena, da fala da mãe do menino e realmente não conseguia entender por que eram “coisas ruins”. Cheguei a pensar em deixar de comê-los, mas esse pensamento não durou nem trinta segundos. Depois contei tudo para a minha mãe, que fez um enorme esforço para tentar me explicar por que, afinal, uma criança não poderia comer um doce dado por outra criança.

Esse é apenas um exemplo de muitos. Quando “os crentes” passavam na rua nós parávamos o que estivéssemos fazendo até eles passarem. Se uma pipa ou uma bola caia na casa “dos crentes” era uma novela para decidir quem bateria lá para pedir para pegar. Nas outras casas nós simplesmente as invadíamos. Tomávamos uma bronca atrás da outra, mas era parte da vida. Só não invadíamos as casas que tinham cachorros e que não eram nossos aliados. Quase todos os cachorros eram nossos aliados, mas alguns deles não e, nesses casos, precisávamos chamar os donos, que nos xingavam da mesma forma, mas sempre devolviam a bola ou a pipa. Os crentes também devolviam, e nunca nos xingavam. Apenas sorriam, mas mesmo assim morríamos de medo deles. 

Havia, naquela rua, outros processos de evitação que não cabem nesse post, mas o que eu gostaria de discutir ao final é que todas essas interações construíram os meus “outros” por muito tempo. Assim como, provavelmente, me construíram como “o outro” dos crentes. São processos sociais básicos, que todo e qualquer estudante de antropologia visa compreender e experimentar. Embora sejam culturais, penso no quanto perdemos ao vivenciar esses processos dessa forma. “Ganhamos” uma identidade também materializada pela evitação dessas e outras pessoas, mas perdemos muito por não aprendermos nada sobre a vida “dos crentes” e de outras pessoas que eram evitadas naquele contexto. A antropologia, não somente como ciência, mas como modo de vida, deixa claro que é muito mais interessante mergulhar no mundo dos outros para descobrirmos que eles são seres humanos exatamente como todos nós. Isso não acaba com os processos de identidade e alteridade porque eles são inerentes à vida social, mas ter a curiosidade etnográfica como modo de vida amplia as nossas possibilidades e nos faz perceber que o mundo não cabe nas fronteiras de nossas vidas. A propósito, depois de adulto mergulhei muito no mundo "dos crentes", conheci várias pessoas e grupos e descobri que eles são muito mais plurais e diversos do que minhas experiências na infância permitiam dizer. 

Fica uma dica: descubram os seus outros e relativizem esses processos de evitação. A humanidade ganha muito com isso e todos nós também. 

Referências citadas no post:

DAMATTA, Roberto. “O ofício do etnólogo. Ou como ter anthropological Blues”. Rio de Janeiro: Boletim do Museu Nacional (27). 1978. 
VELHO, Gilberto. Observando o Familiar. In: VELHO, Gilberto. Individualismo e Cultura: notas para uma antropologia da sociedade contemporânea. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999.