O texto abaixo é o relato da experiência vivida pelo meu querido amigo Rogério Ferreira de Souza. Ele travou uma tremenda batalha com a COVID e felizmente venceu. No relato, expressa as emoções vividas e salienta a potência do trabalho de todos os profissionais que vivem no dia a dia a tarefa hercúlea de salvar vidas. Sigamos para o texto porque ele dispensa quaisquer comentários.
Humanos, demasiadamente humanos
Rogério Ferreira de Souza
Doutor em Sociologia -
Professor e Coordenador do Programa de Pós Graduação em Sociologia Política
IUPUERJ-Universidade Candido Mendes e
Coordenador do Comitê de Pesquisa “Memória e Sociedade” junto à
Sociedade Brasileira de Sociologia.
Ao longo de grandes catástrofes,
ou dos acidentes coletivos que nos atingem, muitas vezes de forma inesperada,
testemunhamos o trabalho de bombeiros, policiais, médicos e uma gama de outros profissionais
prontos a agir para salvar vidas—ainda que muitas vezes coloquem as suas
próprias em perigo. Por isso, não é raro
que os denominemos “heróis”, sobre-humanos, elevando-os à categoria de seres
extraordinários, quase como se fizessem parte de outro mundo que não este
nosso, tão humano, em que vivemos.
Durante a pandemia de Covid-19,
essa condição sobre-humana que conferimos àqueles que se dispõem a zelar e a
salvar nossas vidas tem se evidenciado ainda mais. Costumamos referirmo-nos a
eles como os “profissionais da linha de frente”, e, dentre estes, principalmente
os profissionais de saúde intensivistas, que atuam incansavelmente nos CTI’s
(ou UTI’s) de todo o país, como “heróis”. Ali, esses profissionais se revezam
para manter o tratamento dos doentes full
time; para eles, cada vida importa e cada vida é festejada quando o sucesso
da recuperação se concretiza; a recuperação, sabem eles, é a verdadeira
recompensa de seu trabalho árduo!
Durante a primeira onda da
pandemia no país, em 2020, junto com Paulo Gajanigo, professor e pesquisador da
Universidade Federal Fluminense, desenvolvemos uma pesquisa sobre relatos do
cotidiano durante o confinamento e a nova rotina que nos foram impostos pela
pandemia. Nessa pesquisa, publicada com o título “A pandemia e o ordinário:
apontamentos sobre a afinidade entre experiência pandêmica e registros cotidianos”,
analisamos como as pessoas experimentavam e relacionavam suas rotinas com as
mudanças advindas do isolamento social e do aumento no número de casos e
vítimas de Covid-19.
Àquela altura, mal podia
imaginar que passaria, em 2021, de pesquisador a objeto de pesquisa. Há coisa
de meses, fui diagnosticado com Covid-19 e devido a um quadro que se agravou,
precisei ser internado e intubado em um hospital privado no Rio de Janeiro, e
passei vários dias no CTI. Esta, sem dúvida, foi a mais terrível experiência de confronto com a morte que vivi
até hoje. E foi ali, em meio a esse confronto, ao retomar a consciência depois
de dez dias intubado, que meu empuxo de pesquisador me levou a observar, com
esmero, o conjunto de procedimentos e atividades necessários à reabilitação de
pacientes que partilham comigo a experiência desse confronto.
Esta condição, ora de paciente,
ora de observador, permitiu-me acompanhar a rotina de dentro do CTI, quase como
se fosse mesmo um “trabalho de campo”. Das atividades mais simples às mais
complexas — todas igualmente importantes porque, sim, no CTI, tudo é importante!
— o que via não eram aqueles “heróis” entronizados pela cultura do
individualismo. Havia, ali, uma visão de conjunto, um coletivo de humanos,
demasiadamente humanos — e demasiadamente trabalhadores —, empenhados em seu
labor, dedicando-se ao máximo para fazer o melhor e da melhor forma possível. Ali,
nada pode dar errado, qualquer erro pode ser fatal.
Nas conversas que tive com aqueles
profissionais—exímios profissionais!—pude ver, no entanto, que ali havia, de
fato, mais do que trabalho técnico; havia mesmo uma partilha de afetos de
profissional para profissional, de profissional para pacientes. Como resultado,
vi uma síntese entre a boa, isto é, a melhor execução possível do trabalho técnico,
conjugada ao mais afetuoso convívio entre a equipe profissional e os pacientes.
Foi aquele convívio afetuoso
que pôde reforçar, para mim, a importância do trabalho como construção do ser
social; só uma compreensão desse tipo pode contribuir para uma sociedade mais justa, edificante, menos
desigual.
Diante dos descaminhos e
tropeços da política governamental no que diz respeito ao combate à pandemia, é
necessário reconhecer, mais do que nunca, que, a despeito da precarização do
trabalho, da dupla (e às vezes tripla) jornada desses profissionais, da péssima
remuneração e outros tantos fatores, a estes profissionais, não lhes falta o
que há (ou deveria haver) de mais especial em cada um de nós: humanidade. Diante
deles, não estamos diante de “heróis”, mas de humanos, demasiadamente humanos,
para os quais o valor do trabalho reside na certeza de que cada vida, por mais
custoso que isto lhes seja, vale a pena. E como vale!