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Sou um antropólogo brasileiro especializado em temas educacionais. Meus trabalhos focalizam as relações existentes entre a educação escolar e outras esferas da vida social. Atualmente, desenvolvo pesquisas sobre estratégias familiares e projetos de escolarização nas camadas populares das cidades do Rio de Janeiro e Petrópolis, ambas no Brasil. A abordagem inclui reflexões sobre a educação básica e o ensino superior. O debate sobre a construção social das juventudes é privilegiado porque permite interpretações refinadas sobre as relações entre educação escolar e expectativas de futuro. Trabalho no Departamento de Fundamentos da Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro-UFRJ onde ensino antropologia e sociologia da educação, além de orientar estudantes interessados no debate entre ciências sociais e educação.

quarta-feira, 14 de abril de 2021

Humanos, demasiadamente humanos, por: Rogério Ferreira de Souza

 O texto abaixo é o relato da experiência vivida pelo meu querido amigo Rogério Ferreira de Souza. Ele travou uma tremenda batalha com a COVID e felizmente venceu. No relato, expressa as emoções vividas e salienta a potência do trabalho de todos os profissionais que vivem no dia a dia a tarefa hercúlea de salvar vidas. Sigamos para o texto porque ele dispensa quaisquer comentários. 

Humanos, demasiadamente humanos

Rogério Ferreira de Souza

Doutor em Sociologia - Professor e Coordenador do Programa de Pós Graduação em Sociologia Política IUPUERJ-Universidade Candido Mendes e  Coordenador do Comitê de Pesquisa “Memória e Sociedade” junto à Sociedade Brasileira de Sociologia.

Ao longo de grandes catástrofes, ou dos acidentes coletivos que nos atingem, muitas vezes de forma inesperada, testemunhamos o trabalho de bombeiros, policiais, médicos e uma gama de outros profissionais prontos a agir para salvar vidas—ainda que muitas vezes coloquem as suas próprias  em perigo. Por isso, não é raro que os denominemos “heróis”, sobre-humanos, elevando-os à categoria de seres extraordinários, quase como se fizessem parte de outro mundo que não este nosso, tão humano, em que vivemos.

Durante a pandemia de Covid-19, essa condição sobre-humana que conferimos àqueles que se dispõem a zelar e a salvar nossas vidas tem se evidenciado ainda mais. Costumamos referirmo-nos a eles como os “profissionais da linha de frente”, e, dentre estes, principalmente os profissionais de saúde intensivistas, que atuam incansavelmente nos CTI’s (ou UTI’s) de todo o país, como “heróis”. Ali, esses profissionais se revezam para manter o tratamento dos doentes full time; para eles, cada vida importa e cada vida é festejada quando o sucesso da recuperação se concretiza; a recuperação, sabem eles, é a verdadeira recompensa de seu trabalho árduo!

Durante a primeira onda da pandemia no país, em 2020, junto com Paulo Gajanigo, professor e pesquisador da Universidade Federal Fluminense, desenvolvemos uma pesquisa sobre relatos do cotidiano durante o confinamento e a nova rotina que nos foram impostos pela pandemia. Nessa pesquisa, publicada com o título “A pandemia e o ordinário: apontamentos sobre a afinidade entre experiência pandêmica e registros cotidianos”, analisamos como as pessoas experimentavam e relacionavam suas rotinas com as mudanças advindas do isolamento social e do aumento no número de casos e vítimas de Covid-19.

Àquela altura, mal podia imaginar que passaria, em 2021, de pesquisador a objeto de pesquisa. Há coisa de meses, fui diagnosticado com Covid-19 e devido a um quadro que se agravou, precisei ser internado e intubado em um hospital privado no Rio de Janeiro, e passei vários dias no CTI. Esta, sem dúvida, foi a mais terrível  experiência de confronto com a morte que vivi até hoje. E foi ali, em meio a esse confronto, ao retomar a consciência depois de dez dias intubado, que meu empuxo de pesquisador me levou a observar, com esmero, o conjunto de procedimentos e atividades necessários à reabilitação de pacientes que partilham comigo a experiência desse confronto.

Esta condição, ora de paciente, ora de observador, permitiu-me acompanhar a rotina de dentro do CTI, quase como se fosse mesmo um “trabalho de campo”. Das atividades mais simples às mais complexas — todas igualmente importantes porque, sim, no CTI, tudo é importante! — o que via não eram aqueles “heróis” entronizados pela cultura do individualismo. Havia, ali, uma visão de conjunto, um coletivo de humanos, demasiadamente humanos — e demasiadamente trabalhadores —, empenhados em seu labor, dedicando-se ao máximo para fazer o melhor e da melhor forma possível. Ali, nada pode dar errado, qualquer erro pode ser fatal.

Nas conversas que tive com aqueles profissionais—exímios profissionais!—pude ver, no entanto, que ali havia, de fato, mais do que trabalho técnico; havia mesmo uma partilha de afetos de profissional para profissional, de profissional para pacientes. Como resultado, vi uma síntese entre a boa, isto é, a melhor execução possível do trabalho técnico, conjugada ao mais afetuoso convívio entre a equipe profissional e os pacientes.

Foi aquele convívio afetuoso que pôde reforçar, para mim, a importância do trabalho como construção do ser social; só uma compreensão desse tipo pode contribuir para  uma sociedade mais justa, edificante, menos desigual.

Diante dos descaminhos e tropeços da política governamental no que diz respeito ao combate à pandemia, é necessário reconhecer, mais do que nunca, que, a despeito da precarização do trabalho, da dupla (e às vezes tripla) jornada desses profissionais, da péssima remuneração e outros tantos fatores, a estes profissionais, não lhes falta o que há (ou deveria haver) de mais especial em cada um de nós: humanidade. Diante deles, não estamos diante de “heróis”, mas de humanos, demasiadamente humanos, para os quais o valor do trabalho reside na certeza de que cada vida, por mais custoso que isto lhes seja, vale a pena. E como vale!

 

 


sábado, 10 de abril de 2021

"Os crentes" e a sociabilidade na infância. Afinal, quais são os seus outros?

A antropologia preocupa-se com a construção de um saber em total interação com os “outros” do antropólogo. Esses outros podem estar em culturas distantes daquela em que o antropólogo está inserido ou pertencerem “à mesma” cultura do antropólogo. Tanto faz! A clássica discussão realizada entre o Roberto da Matta e o Gilberto Velho sobre familiaridade, exotismo e distanciamento da conta de explicar as dinâmicas etnográficas num ou noutro caso. 

O que desejo nesse post é contar uma história da minha infância. Durante a pandemia eu tenho feito longos exercícios de memória com o objetivo de reconstruir a minha trajetória social e cultural. É claro que tenho plena ciência de que esses exercícios promovem apenas recortes e releituras de memórias passadas, mas são interessantes, inclusive, para pensar em questões chave do pensamento antropológico e das experimentações etnográficas. 

Eu vivi até os 14 anos em uma rua incrustrada na mata atlântica, na famosa região chamada de serra velha da estrela, em Petrópolis. Era uma rua composta exclusivamente por casas, sem nenhum edifício; e todo mundo conhecia todo mundo. As crianças brincavam juntas e vários rituais – aniversários, casamentos, cerimônias religiosas – eram vividos por quase todos em conjunto. O “quase” da frase anterior é o ponto que desejo discutir aqui. 

Naquela rua havia uma parte de católicos praticantes, outra de “católicos umbandistas”, outra de umbandistas e também “os crentes”. Os “católicos umbandistas” eram aqueles que praticavam as duas religiões simultaneamente. Desde já peço desculpas aos meus amigos sociólogos e antropólogos da religião por essa simplificação grotesca, mas ela é adequada apenas para os limites desse post. 

Eu estava entre os “católicos umbandistas”. Minhas duas avós representavam essas duas vertentes religiosas presentes na construção da minha pessoa. Uma delas era católica apostólica romana praticante. A outra também era católica, mas frequentava centros de umbanda e participava de todos os rituais. Com isso, eu criança ficava lá e cá. Frequentava as missas, os rituais nos terreiros, as festas da igreja, as festas de santo e navegava com tranquilidade por todos esses espaços. 

Católicos e “católicos umbandistas” conviviam com certa serenidade, frequentavam-se, conversavam, trocavam presentes, abençoavam uns aos outros, cuidavam mutuamente das crianças, rezavam ou benziam as crianças vitimadas com “mau-olhado”. Por isso, nós, as crianças, crescíamos nesse ambiente repleto de diversidade religiosa e cultural; e construíamos nossas subjetividades nesse contexto, o que contribuía para que respeitássemos uns aos outros e gostássemos dessas diferenças. 

Mas com “os crentes” era diferente. Era assim que nós chamávamos os evengélicos. Eles eram "os crentes”. Hoje vejo que tratava-se de uma categoria englobante e estigmatizadora que reduzia aquele conjunto de pessoas ao seu pertencimento religioso, que nem sabíamos bem qual era. 

“Os crentes” viviam em três casas na rua. Uma logo no começo e outras duas bem no finalzinho, perto da minha, que era a última casa da rua. Meu olhar de criança os estranhava muito, principalmente as mulheres e as meninas porque usavam sempre vestidos ou saias longuíssimos, até os calcanhares, cabelos também longuíssimos, até a cintura. As meninas nunca falavam comigo ou com os outros meninos e nunca, em nenhuma hipótese, brincavam na rua. Viviam em casa e naquela época eu pensava: o que será que elas fazem dentro de casa o dia inteiro? Na verdade, até hoje penso nisso. 

Houve, durante toda a minha infância, pouquíssimos encontros com “os crentes”. Vou contar um deles para deixar claros os níveis de estranhamento e evitação presentes naquele contexto. Era um período de festas de Cosme e Damião. Nessas festas, as famílias se organizam para distribuir doces para as crianças, dados em homenagem aos orixás crianças, presentes na umbanda e também no candomblé. As crianças ficavam em polvorosa – naquela época não havia ainda a crítica ao consumo excessivo de açúcar entre crianças – e corriam para lá e para cá atrás dos doces. 

Eu era pequeno, talvez tivesse uns 10 ou 11 anos. Estava comendo uns doces em frente à varanda de uma das casas da rua. Lá dentro, estava uma das famílias crentes. A mãe, o pai e um dos filhos, que tinha idade aproximada à minha. Eles estavam em uma das casas católicas da rua não sei bem por quais motivos. O menino, quando me viu comendo os doces, olhou e arregalou os olhos. Eu entendi como um pedido, do tipo “me dá um aí”. Imediatamente peguei um dos doces e estendi a mão para entregar a ele. Ele veio correndo em direção ao doce até que a mãe o segurou pela gola da camisa e disse: “não! Já falei que não! Isso não pode. Você não pode comer essas coisas ruins!”. O menino arregalou os olhos, bateu o pé, verteu algumas lágrimas em silêncio e aceitou seu destino resignadamente. Ele não comeria os doces. 

A católica, dona da casa, que me conhecia desde que eu tinha nascido, fez um sinal para eu ir embora e voltar depois. Eu entendi e segui pensando. Eu olhava para os doces, eu me lembrava da cena, da fala da mãe do menino e realmente não conseguia entender por que eram “coisas ruins”. Cheguei a pensar em deixar de comê-los, mas esse pensamento não durou nem trinta segundos. Depois contei tudo para a minha mãe, que fez um enorme esforço para tentar me explicar por que, afinal, uma criança não poderia comer um doce dado por outra criança.

Esse é apenas um exemplo de muitos. Quando “os crentes” passavam na rua nós parávamos o que estivéssemos fazendo até eles passarem. Se uma pipa ou uma bola caia na casa “dos crentes” era uma novela para decidir quem bateria lá para pedir para pegar. Nas outras casas nós simplesmente as invadíamos. Tomávamos uma bronca atrás da outra, mas era parte da vida. Só não invadíamos as casas que tinham cachorros e que não eram nossos aliados. Quase todos os cachorros eram nossos aliados, mas alguns deles não e, nesses casos, precisávamos chamar os donos, que nos xingavam da mesma forma, mas sempre devolviam a bola ou a pipa. Os crentes também devolviam, e nunca nos xingavam. Apenas sorriam, mas mesmo assim morríamos de medo deles. 

Havia, naquela rua, outros processos de evitação que não cabem nesse post, mas o que eu gostaria de discutir ao final é que todas essas interações construíram os meus “outros” por muito tempo. Assim como, provavelmente, me construíram como “o outro” dos crentes. São processos sociais básicos, que todo e qualquer estudante de antropologia visa compreender e experimentar. Embora sejam culturais, penso no quanto perdemos ao vivenciar esses processos dessa forma. “Ganhamos” uma identidade também materializada pela evitação dessas e outras pessoas, mas perdemos muito por não aprendermos nada sobre a vida “dos crentes” e de outras pessoas que eram evitadas naquele contexto. A antropologia, não somente como ciência, mas como modo de vida, deixa claro que é muito mais interessante mergulhar no mundo dos outros para descobrirmos que eles são seres humanos exatamente como todos nós. Isso não acaba com os processos de identidade e alteridade porque eles são inerentes à vida social, mas ter a curiosidade etnográfica como modo de vida amplia as nossas possibilidades e nos faz perceber que o mundo não cabe nas fronteiras de nossas vidas. A propósito, depois de adulto mergulhei muito no mundo "dos crentes", conheci várias pessoas e grupos e descobri que eles são muito mais plurais e diversos do que minhas experiências na infância permitiam dizer. 

Fica uma dica: descubram os seus outros e relativizem esses processos de evitação. A humanidade ganha muito com isso e todos nós também. 

Referências citadas no post:

DAMATTA, Roberto. “O ofício do etnólogo. Ou como ter anthropological Blues”. Rio de Janeiro: Boletim do Museu Nacional (27). 1978. 
VELHO, Gilberto. Observando o Familiar. In: VELHO, Gilberto. Individualismo e Cultura: notas para uma antropologia da sociedade contemporânea. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999.