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Sou um antropólogo brasileiro especializado em temas educacionais. Meus trabalhos focalizam as relações existentes entre a educação escolar e outras esferas da vida social. Atualmente, desenvolvo pesquisas sobre estratégias familiares e projetos de escolarização nas camadas populares das cidades do Rio de Janeiro e Petrópolis, ambas no Brasil. A abordagem inclui reflexões sobre a educação básica e o ensino superior. O debate sobre a construção social das juventudes é privilegiado porque permite interpretações refinadas sobre as relações entre educação escolar e expectativas de futuro. Trabalho no Departamento de Fundamentos da Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro-UFRJ onde ensino antropologia e sociologia da educação, além de orientar estudantes interessados no debate entre ciências sociais e educação.

domingo, 6 de setembro de 2020

Alteridade e empatia em "Estou pensando em acabar com tudo", novo filme de Charlie Kaufman.

Eu passei parte da madrugada de hoje assistindo ao novo filme do Charlie Kaufman “Estou pensando em acabar com tudo”. O roteiro do filme é baseado no livro de mesmo título, escrito por Iain Reid, que conta a história de Lucy, uma jovem que pensa em terminar um relacionamento afetivo depois de 7 semanas de seu início.

Tudo começa com uma viagem à casa dos pais de Jake, seu namorado, e já durante o trajeto todas as questões internas vividas pela personagem aparecem em seus pensamentos, seus olhares para Jake, suas ações e nos diálogos entre o casal. Jake parece não entender bem o que está ocorrendo ali naquele carro, talvez por estar mais preocupado com o encontro entre ele, sua nova namorada e seus pais. São dois jovens juntos e solitários em suas questões, dentro de um mesmo carro, seguindo não sabem muito bem para qual lugar. Ela porque não conhece nem o lugar e nem os pais. Ele porque embora conheça tudo, não faz a menor ideia da relação que surgirá deste encontro.

Há um conjunto de questões filosóficas e existenciais presentes no filme, mas a que me parece mais forte é a temática da finitude das relações humanas. Não somente porque ela está presente desde o título, mas porque ela surge em dezenas de cenas, envolvendo todos os personagens numa trama que ocorre de forma não linear.

A trama não linear e o debate sobre a finitude são um dos paradoxos mais interessantes do filme. Ao mesmo em tempo que o roteiro subverte nossas visões sobre presente, passado e futuro, aponta como princípio da finitude o fato de os homens nunca conseguirem viver no presente porque guardam memórias do passado e expectativas de futuro.

É claro que Kaufman comete um exagero nada antropológico quando propõe esse princípio porque há sim sociedades em que nosso modelo linear de tempo não faz o menor sentido, e não são poucas. Não vou entrar nesse debate aqui porque o texto deixaria de ser um post. Um passeio pelo debate sobre tempo e espaço na antropologia ajuda a relativizar tal postulado.

Para aqueles que vivem em uma temporalidade linear e ao mesmo tempo reconhecem as limitações dessa temporalidade o filme é um primor. Qual é o tempo certo de terminar uma relação? E o que acontece com ela quando ela termina? O que há de eu e de outro nas decisões relacionadas ao término de uma relação? E quando esse término é imponderável?

O filme trata de todas essas questões. A morte aparece como um imponderável. Quando ela surge, as relações entre os mortos necessariamente se transformam. Alguns diriam que acabam, mas eu particularmente não concordo com isso. Nossos mortos fazem parte de nossas vidas e, por vezes, chegam a pautar a agenda de nossas existências. Mas eles ganham outro estatuto, gerado pelas memórias que escolhemos para guardar. Há mortos amados e mortos odiados e esses sentimentos variam mais na forma do que no conteúdo. Quando os amamos ou os odiamos queremos no fundo permanecer em relação com eles.

Mas a finitude também aparece no filme no relacionamento entre os vivos. Viver um relacionamento afetivo envolve, dentre muitas outras, duas questões centrais: a experiência da alteridade e a empatia a ela relacionada. Como ser eu sendo o outro simultaneamente? Essas questões se colocam para todos os casais, com roupagens as mais diversas, e também para outros relacionamentos como pais e filhos, amigos, irmãos. O grande dilema inicial de Lucy é exatamente esse. Ela estava começando um relacionamento com Jake e não sabia se desejava continuar. É claro que ela também não sabia se ele queria ou não, mas a ação de levá-la à casa dos pais dele indicava que sim, e ela questionava inclusive a noção de justiça envolvida naquela viagem. Seria justo ir à casa dos pais do Jake mesmo pensando em acabar com a relação?

A sequência do filme torna essas questões ainda mais intensas. Eu não teria como desenvolvê-las aqui sem dar vários spoilers. Vou terminar compartilhando a questão que, para mim, é a mais importante do filme. Uma relação nunca acaba porque mesmo que deixemos de ver e conviver com alguém essa pessoa permanece conosco no plano da memória e tudo o que vivemos com ela faz parte do que somos. Há também relações que se transformam com o tempo, continuam existindo, mas como em um vácuo. Jake se relacionava com os pais no presente, mas com a cabeça e os sentimentos conectados à relação que tinha com eles no passado. Logo, não havia relação no presente para além das memórias do passado. Meu ponto é que isso ocorre porque as relações do passado foram tão fortes na construção do homem que o Jake é, que deixá-las para trás seria abrir mão do próprio Jake, algo assustador para qualquer pessoa. Porém, talvez se Jake tivesse “matado” seus pais do passado, poderia ter construído uma relação diferente com eles no presente, tendo seus pais também no presente. Em termos antropológicos, ser eu é ser outro simultaneamente. E nesse jogo de identidades e alteridades definimos quem nós somos e quem são os outros, com alguma margem de escolha. Ninguém é bom ou mau, belo ou feio, certo ou errado, Deus ou o Diabo. Todos nós fomos e somos isso tudo; e nossas relações dependem da pitada de cada item que queremos colocar nesse “caldeirão de empatias”. Inaugurar uma nova relação a cada período com nossos entes queridos pode ser bom, principalmente reconhecendo o que há de bom e de mau em cada um deles. Esse parece ser um dos recados do filme. É um tremendo paradoxo, mas acabar com tudo e começar tudo pode ser a mesmíssima coisa, desde que queiramos aqueles outros em nossas vidas, dentro das possibilidades trazidas por novas formas de relacionamento. Enfim, assistam ao filme! Vale muito a pena.