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Sou um antropólogo brasileiro especializado em temas educacionais. Meus trabalhos focalizam as relações existentes entre a educação escolar e outras esferas da vida social. Atualmente, desenvolvo pesquisas sobre estratégias familiares e projetos de escolarização nas camadas populares das cidades do Rio de Janeiro e Petrópolis, ambas no Brasil. A abordagem inclui reflexões sobre a educação básica e o ensino superior. O debate sobre a construção social das juventudes é privilegiado porque permite interpretações refinadas sobre as relações entre educação escolar e expectativas de futuro. Trabalho no Departamento de Fundamentos da Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro-UFRJ onde ensino antropologia e sociologia da educação, além de orientar estudantes interessados no debate entre ciências sociais e educação.

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2017

A honra de Lula e a vergonha dos outros perante a morte de Marisa Letícia

Eu nasci bem antes da popularização da internet e dos videogames. Rede social virtual era algo que só existia na cabeça dos mais visionários. Por isso, a vida das crianças acontecia nas ruas onde grupos de meninos e meninas brincavam e inventavam sua própria infância. Futebol da esquina, escaladas nas montanhas serranas, expedições às cachoeiras, excursões de bicicleta animavam nossas vidas fora da escola. Havia também dois outros tipos de interação que nos animavam frequentemente: a implicância (hoje chamada de zoação) e as brigas (simbólicas e físicas). Grupos de meninos eram organizados como pequenas “gangs” que disputavam o território do futebol e qualquer outro espaço que estivesse disponível.

Essas implicâncias e brigas faziam parte de nossa progressiva construção ética e moral. Eram ritualísticas e todos nós sabíamos como iriam começar e como iriam terminar. Quando iniciávamos uma brincadeira, já prevíamos quem sofreria com as implicâncias, quem defenderia o vitimado, o que seria dito, os acordos de paz que seriam firmados e o final daquela brincadeira. No final das contas, íamos embora satisfeitos e com os laços invisíveis de solidariedade reafirmados, tanto aqueles que eram pautados no afeto quanto aqueles pautados no conflito.

Por mais conflituosos que fossem esses encontros, havia regras éticas inquebrantáveis. Dentre muitas outras, não era permitido xingar a mãe de qualquer oponente, nem dizer que iria comer a irmã de alguém. Também não era permitido desafiar alguém que fosse visivelmente mais fraco e jamais se deveria comemorar a desgraça de qualquer oponente, mesmo que ele fosse um inimigo histórico.

Essas regras éticas eram tão bem estabelecidas que qualquer um que as quebrasse seria imediatamente constrangido por todos os meninos, aqueles que pertenciam ao seu grupo e seus oponentes. Havia diversas punições. A pior delas era ser mandado para casa e impedido de falar com qualquer menino da rua por um período que poderia variar entre um dia até uma semana; uma semana para casos mais graves como dizer que teria comido a irmã de alguém.

Bem mais tarde, descobri que esses valores eram muito próximos daqueles que vigoravam nas sociedades mediterrâneas. Quando li o J. G. Peristiany[1] entendi que honra e vergonha são (ou eram) princípios estruturantes das interações sociais no contexto mediterrâneo. Guardadas as devidas especificidades locais, eu e meu grupo de meninos éramos organizados por esses princípios. Não sabíamos bem disso, mas queríamos ser honrados, o que significava defender a própria dignidade, a honra de nossas mães e de nossas irmãs.  Minha irmã me dava um trabalho danado porque era (e continua) linda, o que a transformava em munição para meus “inimigos”.

É claro que esses valores guardam muito do machismo tradicional. Discuti-lo demandaria um espaço maior do que o que pretendo usar aqui (fica para outro post). Meu foco hoje está na impossibilidade de comemorar a desgraça de qualquer inimigo. Esse tipo de comemoração estava entre as piores desonras. Lembro-me de uma situação em que um dos meninos caiu em uma cachoeira no exato momento em que pulava e caçoava freneticamente de outro. O motivo da zoação era o fato de o menino ter corrido de uma menina que, supostamente, queria namorar com ele. Ao pular de uma pedra à outra, o “zoador” caiu. De início, todos nós rimos largamente até que percebemos que não era um tombo bobo qualquer. Ele estava realmente machucado. Nesse momento, o menino “zoado” foi o primeiro a pular nas pedras para socorrer o seu “inimigo”. Nós o carregamos até sua casa em silêncio, em uma trégua silenciosa. Era a honra do grupo que nos movimentava e seria uma vergonha completa não socorrê-lo ou caçoar de sua desgraça.

Contei toda essa história para dizer que morro de vergonha das pessoas que estão comemorando a morte da ex-primeira dama Marisa Letícia. Não estou interessado em saber quem gosta ou desgosta do Lula e/ou de sua família. Também não estou interessado em discutir pela enésima vez quem são os responsáveis pela situação do Brasil contemporâneo. Nada disso tem qualquer relação com o riso e o deboche perante a morte. Marisa Letícia morreu e Lula tem todo o direito de sofrer porque perdeu a mulher que o acompanhou durante a maior parte de sua vida. Os filhos também têm o direito de sofrer porque perderam a mãe, os amigos e correligionários, idem. Os inimigos deles deveriam usar o princípio da honra e realizar uma trégua silenciosa nesse momento, para que não fiquem envergonhados com o que a história contará para seus próprios filhos.

Lula, receba minha solidariedade. Tenho certeza que boa parte do povo também te oferecerá o mesmo.



[1] Peristiany, Honour and shame. The values of Mediterranean society. University of Chicago Press, 1966.