Quem sou eu

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Sou um antropólogo brasileiro especializado em temas educacionais. Meus trabalhos focalizam as relações existentes entre a educação escolar e outras esferas da vida social. Atualmente, desenvolvo pesquisas sobre estratégias familiares e projetos de escolarização nas camadas populares das cidades do Rio de Janeiro e Petrópolis, ambas no Brasil. A abordagem inclui reflexões sobre a educação básica e o ensino superior. O debate sobre a construção social das juventudes é privilegiado porque permite interpretações refinadas sobre as relações entre educação escolar e expectativas de futuro. Trabalho no Departamento de Fundamentos da Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro-UFRJ onde ensino antropologia e sociologia da educação, além de orientar estudantes interessados no debate entre ciências sociais e educação.

sábado, 23 de dezembro de 2023

Um homem chamado Liberdade

Em novembro de 2023 recebi um presente de um amigo querido: o livro: “Um homem chamado liberdade”. Fui presenteado pelo próprio autor: Jelcy Rodrigues Corrêa Júnior.

Jelcy foi meu professor e trata-se de uma das pessoas com quem mais aprendi na vida, no auge da minha adolescência em Petrópolis. Ele era a maior referência da minha turma de ensino médio. Alguém que ensinava dialogando nos nossos próprios termos e conseguia, com primor, realizar todos os deslocamentos pedagógicos necessários para que transpuséssemos as redomas dos nossos próprios circuitos de socialização e percebêssemos o mundo social em sua grandeza e diversidade, que estavam para além de nós mesmos.

Ele nos ensinou um pouco de tudo: grandezas matemáticas, economia brasileira, normas e regras de gerenciamento, filosofia, literatura e história brasileiras. Como ele conseguia esta proeza? Inserindo conteúdos na forma de um bate-papo com uma garotada que estava ali, quase concluindo o ensino médio e sem saber bem o que faria da vida. Ele estava conosco, dentro e fora das salas de aula, nos corredores, nas confraternizações, no refeitório, no cafezinho; e atraía todos nós com as suas conversas sobre tudo.

À época, eu e meus amigos mais próximos desenvolvíamos teorias sobre o Jelcy. Imaginávamos que ele tivera passado toda a vida estudando, que deveria ter uma biblioteca gigantesca em casa e que já deveria ter lido tudo o que estava disponível por lá. Chegávamos a conjecturar que toda a sua família deveria fazer a mesma coisa: ficar o dia inteiro em uma biblioteca trocando ideias e conhecendo o Brasil. Nunca comprovamos as teorias e seguimos acreditando nelas piamente até hoje.

Um homem chamado liberdade conta parte da história de Jelcy com seu pai, também chamado Jelcy. Ao ler as linhas, conheci um pouco mais deste professor que tanto me inspirou na vida e na minha profissão. Em certa medida, Jelcy filho é um dos responsáveis por eu ter me tornado professor. Assim como o pai, ele tornou-se uma referência para muitas pessoas, inclusive para os seus alunos.

O livro começa pelo fim. Acometido pela COVID-19, Jelcy pai foi internado e deixou a família inteira preocupada com o desenrolar do tratamento, que infelizmente não foi suficiente. Jelcy pai foi mais uma das vítimas da pandemia e do descaso do governo brasileiro com a população. Depois deste início trágico, o texto oferece um passeio sobre uma vida de luta, militância e compromisso político, ético e moral de um homem e de sua família. Entre idas e vindas, presente e passado se entrelaçam na narrativa, tecendo um caminho que permite ao leitor conhecer as ações e as estratégias profissionais e familiares que Jelcy pai desenvolveu, dado o campo de possibilidades disponível para ele e sua família durante a sua vida.

Jelcy filho, o autor, constrói um texto muito parecido com as suas aulas. Uma narrativa leve, entremeada por histórias, repleto de informações objetivas sobre o cenário político brasileiro e, principalmente, inundado por emoções e afetos relacionados ao seu pai, à sua família e à sua própria vida. Não darei nenhum spoiler do livro além do que já escrevi aqui. Espero que os leitores destas linhas busquem o livro, mergulhem na história e envolvam-se com os personagens presentes. A história deles também é a história do Brasil.

Depois de ler o livro conheci um pouco mais sobre o Jelcy filho. Ele, assim como o pai, trabalhou e trabalha em silêncio, oferece ideias gratuitamente para quem as quiser, apresenta perspectivas, defende posições, acolhe as dúvidas. É a síntese do que é ser professor. Por vezes, os professores passam a vida sem saber da importância que tiveram na vida dos alunos. Falo isso também por profissão. Nós realizamos as aulas, corrigimos os trabalhos, dialogamos com os alunos. Depois de tudo, eles seguem seus caminhos e não mais sabemos o que ocorreu, o que ficou em cada aluno do que quisemos oferecer. Para o Jelcy, digo que ele me ofereceu muito e que hoje, após mais de 30 anos, ainda guardo fragmentos das suas aulas e das suas conversas. Acredito que o mesmo aconteça com meus colegas de turma, hoje todos quarentões, e alguns já cinquentões.

As referências completas do livro são:

Corrêa, Jr. Jelcy R. Um homem chamado liberdade. Petrópolis: Rio de Janeiro: Edição do autor, 2023. 

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2023

A batalha da antropologia contra o chatGPT

 Era uma vez um algoritmo safado, arretado, que de tamanha “inteligência” fazia até poesia.

Um cabra virou e disse: esse aí, vai fazer até antropologia!

Sabe de nada esse cabra. Acha que antropologia é a soma de um montão de palavras numa frase e num parágrafo, mas não é, não.

O tal algoritmo pode ser “inteligente”, mas não tem sensibilidade e não sabe interagir.

Interação é coisa da gente, do povo contente.

É o antropólogo que se mete em tudo, vai para o meio do povo e fica por lá.

Olhando, escrevendo, pensando, sentindo e se arrumando com a gente no ato de interagir.

O abestado desse algoritmo se olhar para tudo isso vai é sair correndo.

Vai dizer para ele mesmo que precisa de mais uma fonte para tentar deduzir.

O povo rindo vai dizer que se não entende é porque não é gente e não pode se divertir.

E no final, o antropólogo sai de lá modificado, sensibilizado e prontinho para contar para todo mundo o que ele era e o que passou a ser depois de se meter lá no meio do povo.

Já o algoritmo tá perdidinho, deduzindo daqui e de lá o que não se pode deduzir.

Sai fora, montão de número, a vida é maior do que você.

quinta-feira, 6 de outubro de 2022

Um lanchinho frugal, a morte e a vida que fica: homenagem ao meu pai.

 

Meu pai morreu na terça-feira, dia 04 de outubro de 2022, à noite, por conta de uma parada cardiorrespiratória. Tinha 81 anos. Desde 2019 ele vinha lutando contra um conjunto de doenças severas: Parkinson, diabetes, doença renal crônica, pneumonias sucessivas. Foi uma batalha gloriosa e muito severa. Estive ao lado dele durante todo esse período e aprendi muito sobre a existência humana em seus princípios mais elementares.

Ele foi um humano típico. Errou, acertou, brigou, reconciliou, praguejou contra o que considerava injusto, deu e recebeu carinho, agregou pessoas, separou pessoas. Nunca teve qualquer autocensura sobre o que pensava, de forma que simplesmente abria a boca e deixava o que estava na cabeça sair, por vezes inundando os ambientes com a acidez do que vociferava com a enorme voz que possuía.

Nos últimos anos estivemos muito juntos e nos últimos meses fizemos algumas viagens – de Petrópolis ao Rio de Janeiro – para ele realizar exames e consultas médicas. Essa convivência me permitiu sentir o quanto aquele homem amava viver; sabia que estava em seus momentos finais e os aproveitava como se fossem os últimos.

Em uma dessas viagens, paramos para fazer um lanche. Estávamos eu, ele e meu irmão caçula. Comprei uns croquetes e água para comermos no carro mesmo. Ele já não andava e era muito difícil retirá-lo do carro, colocá-lo à mesa. Tudo era muito difícil e cansativo para ele. Por isso, ficamos ali no carro sentados, ouvindo chorinho e comendo os croquetes. A deglutição dele estava muito prejudicada. Demorava para morder, mastigar, engolir e se engasgava toda hora. Foi assim com o primeiro croquete. Engasgou tanto que eu e meu irmão ficamos preocupados e decidimos não dar o segundo. Não ali. Daríamos quando ele chegasse à clínica na qual estava internado. Ficou puto, me olhou com cara feia e disse “me dá o segundo bolinho”. Não dei. Disse que daria quando chegássemos à clínica. Aceitou sem concordar e seguimos. Durante o restante da viagem estendeu a mão e me pediu o croquete sei lá quantas vezes, e quando eu dizia que ele comeria na clínica, ele afirmava: “não vai ser a mesma coisa”.

Já em Petrópolis, decidi parar o carro e dar o croquete antes de chegarmos à clínica. Feliz da vida, começou a comer de novo, engasgou-se de novo. Ficou ali, literalmente lutando com aquele croquetinho. Perguntei se estava bom e ele disse: “tá, mas quentinho lá na loja estava muito melhor”. Depois disso chegou à clínica todo feliz, contando para os enfermeiros que tinha feito um lance muito gostoso, mesmo assim queria almoçar.

Noutra viagem, assim que entrou no carro fez o ritual de sempre. Apontou para o rádio do carro pedindo a musiquinha, o chorinho que ele gostava e não entendia bem de onde saia. Eu usava o celular, com uma playlist de chorinhos clássicos e aquilo tudo era um grande mistério para alguém que nasceu e viveu a maior parte da vida sem internet. Musiquinha ligada, vem a pergunta: “vai ter bolinho?”. Ele estava descendo para fazer uma consulta séria, que definiria o tratamento dele a partir dali e só tinha uma preocupação: se teria bolinho no retorno. Depois, um dos enfermeiros que cuidava dele me contou que havia outra: a roupa. Ele reclamava muito enquanto estavam escolhendo as roupas dele porque queria vir ao Rio bem bonito e sem roupas repetidas. Bruno, o enfermeiro, achava graça e o tratava como se também fosse filho dele. Bruno é um dos melhores profissionais que conheci nestes tempos. Todos que trabalham na clínica são excelentes, mas Bruno é excepcional. Meu pai o adorava e ele ao meu pai. Como diz a minha mãe, foi um encontro de almas.

No meio do caminho de volta, ele me perguntou algumas vezes: “tá chegando o bolinho”. Eu respondia que sim, mas o tempo para ele era urgente e como uma criança pequena só sossegava quando chegava à lanchonete. Comemos bolinhos de novo, engasgou-se novamente; ficamos ali parados: eu, ele e meu irmão, por quase uma hora enquanto ele comia os seus dois croquetes.

Neste dia ele percebeu que eu e meu irmão também comemos um éclair de chocolate. Depois que finalmente terminou os bolinhos eu perguntei: vamos? E ele: “não! E meu chocolate?” Não dei o chocolate. Era demais para quem iria subir serpenteando a serra de Petrópolis. Não dava para assumir o risco de um engasgo, vômito... tudo era muito perigoso. Prometi o chocolate para a outra viagem, mas infelizmente não deu tempo. Ele chegou contente na clínica, feliz com a viagem, o lanche, pronto para almoçar e ir para a cama.

Toda essa história foi contada para sublinhar o que ele me ensinou. Cada segundo da vida vale a pena. Um homem doente, impossibilitado de andar, que precisava de quase uma hora para comer dois croquetes, com dores permanentes em várias partes do corpo, acometido por um cansaço enorme quando fazia qualquer atividade e, ao mesmo tempo, absolutamente realizado por fazer um lanche com os filhos e poder aguardar o próximo, com chocolate. A vida dele valeu a pena. Agora morreu, mas vive em mim, no meu irmão caçula, na minha irmã, na minha mãe e em todas as pessoas com as quais ele conviveu. E todos nós somos o que somos também porque ele viveu.

Aproveitem cada segundo com seus pais. Encontrem toda a vida que está presente em um lanchinho frugal e façam isso o quanto antes. Nunca sabemos quando vai acabar. Esses momentos permitem que nós compartilhemos as nossas existências em toda amplitude do que significa existir. Tenho certeza de que o “seu João” viveu e morreu sabendo disso. Muito obrigado, pai. 

 

 

segunda-feira, 25 de abril de 2022

A perspectiva feminina na matança do porco e outros animais.

Minha prima, Adriana Machado, escreveu um texto detalhando a participação das mulheres e das meninas nos rituais. Ela revela uma série de questões, inclusive relacionadas à socialização das meninas para serem moças "prendadas" e habilitadas ao casamento. Vamos ao belo texto:

Por: Adriana Machado

Sou a prima do antropólogo Rodrigo Rosistolato, a que morava em outro bairro. 

Sempre vivi em meio aos animais, minha vó criava galinhas, coelhos e porcos. Depois do seu falecimento, meu pai adquiriu por herança esse hábito até os dias de hoje. Detalhe: é aqui na cidade grande. 

Houve uma época em  que a cozinha iria ser modificada para um novo cômodo,  mas meu pai comprara um porquinho achando que seria pequeno, e o bichão cresceu tanto que não tinha lugar para ficar, a obra foi esquecida esperando o tal famoso dia de matar o cachaço!! 

Os homens não deixavam as crianças participarem do momento da morte, diziam que a morte seria dolorosa se ficássemos  com  pena. No dia marcado, dependendo do tamanho  do animal e se o matador perdesse a confiança, inicialmente o porcão ganhava uma marretada na cabeça para "tontear," e depois o punhal era a ferramenta utilizada para sangrar o bicho. 

Nesse momento as mulheres se reuniam  para amolarem facas, preparar temperos, escaldar as latas em que as carnes seriam guardadas depois de prontas, porque nada era congelado.

Os homens permaneciam até o porco ser  morto, sapecado, aberto, separado o sangue e começar o tiragosto.

Posterior a isso tudo.

As mulheres iniciavam os trabalhos, lavar as tripas para o preparo do chouriço e das linguiças. Separar o toucinho das carnes, temperar e cozinhar tudo. 

Não tinham hora para dormir, só depois de tudo pronto. Os  homens sumiam da cozinha ou do quintal. Esse trabalho era exclusivo das mulheres e das meninas, que não podiam sair de perto, porque tinham que aprender como era feito todo o processo para a carne não estragar . 

Se a gente tentava escapar, a vó chamava: "vem menina, tem que aprender , como vai ser uma moça prendada, quem vai querer casar com océ!!" 

Ah, detalhe: era tudo feito no fogão a lenha, as mulheres ainda precisavam cuidar da lenha para não deixar que o fogo apagasse. 

Quanto às galinhas, também eram as mulheres que matavam, limpavam e cozinhavam sozinhas, sem ajuda dos homens. Isso quando as galinhas mesmo sem pescoço não ficavam pulando pela casa, sujando tudo até morrerem! 

Era um terror, hoje a gente ri!!! 

Não sei se devo comentar mas até hoje,  mesmo  sem espaço, meu veinho tem um galinheiro, convivo com o cheiro, o canto do galo na minha porta todos os dias. 

Mas não reclamo, é uma distração e uma briga sem tamanho entre ele e minha mãe! 

Ele quer matar umas galinhas de vez em quando para comer, e quem teria que depenar, limpar e fazer é a minha mãe. 

Ela não deixa. Diz que na panela dela não vai colocar galinha  nenhuma, porque demora mais de três horas no fogo para cozinhar!! Com isso, eles discutem e as galinhas vão vivendo até morrerem de velhice!!! 

É saudoso relembrar, sabores que não se igualam a nada hoje. 

Porém existem essas questões sobre as tarefas a serem realizadas, essa é do homem e essa é da mulher.

Contudo quais são as tarefas masculinas e femininas ???



sábado, 23 de abril de 2022

A matança do porco e os rituais de masculinidade

Matar porco na minha infância era “coisa de homem”. Os porcos eram criados nos quintais das casas e enquanto cresciam eram tratados como membros da família. Eram bem alimentados, cuidados durante a manhã, à tarde e à noite. Eles tomavam banho, recebiam afagos e até mesmo conversávamos com eles. Por vezes, gostávamos mais de uns do que de outros. Havia porcos mais violentos e outros mais carinhosos de forma que nossas relações com eles variavam em acordo com a “personalidade” que os bichos desenvolviam.

No mundo meio rural e meio urbano no qual nasci e cresci, todos os animais eram parte constitutiva das relações familiares. Havia muitas responsabilidades relacionadas a eles e muitos afetos. No caso dos animais de casa, como cães e gatos, eles viviam o tempo todo conosco. Já os animais de quintal, como porcos, galinhas, coelhos, ficavam fora da casa e eram proibidos de entrar. As galinhas vez ou outra quebravam essa regra e chegavam a fazer seus ninhos no interior das casas. Nesse caso, e somente nesse, elas tinham salvo conduto para permanecer na casa enquanto chocavam seus ovos, a não ser que os ovos fossem consumidos sem serem chocados. Daí elas tinham que voltar para o quintal imediatamente.

Minha mãe não era muito de criar bichos. Não era a dela. Já minha tia, que vivia na parte baixa do mesmo terreno, amava os bichos, tanto ela quanto meu tio. Minha outra tia por parte de mãe também criava bichos, mas eu não tinha contato diário com os bichos dela porque ela morava em outro bairro. No caso do nosso terreno, eu ficava para lá e para cá e sentia como se tivesse duas casas, duas mães, dois pais e mais duas irmãs que eram as minhas primas. Quando criança, entrava e saia de ambas as casas sem qualquer constrangimento. Eu também participava da “cria” dos animais da minha tia. Era divertido porque sempre tínhamos histórias dos e com os bichos. Alguns recebiam nomes, outros eram adjetivados por suas características mais ou menos agressivas, mais ou menos bagunceiras... e boa parte deles virava também “brinquedo de crianças”. Eu, meus irmãos e minhas primas vivíamos inserindo os animais nas brincadeiras, inclusive as galinhas que nos forneciam ótimas brincadeiras de detetive. Elas vez ou outra fugiam para o mato para “botar” seus ovos e era divertidíssimo segui-las e descobrir seus berçários secretos. Elas nos odiavam por isso e nos atacavam com seus bicos certeiros, mas nem ligávamos. Afinal, a diversão era acabar com o segredo das galinhas.

Havia diferenças centrais entre os bichos da casa e os do quintal. Os da casa ficavam conosco até morrer. Nunca eram comidos. Já os do quintal tinham um tempo mais curto conosco, duravam até o momento em que viravam um banquete. A morte dos animais era algo sereno nas minhas visões de criança. Os bichos de quintal estavam lá para serem consumidos em algum momento especial, e enquanto não eram, faziam parte de nossa vida. Não havia em mim grandes dilemas com relação a isso, embora tanto eu quanto meus irmãos e minhas primas nos afeiçoássemos aos bichos e precisássemos, por vezes, organizar despedidas para eles.

Em uma conversa de boteco com minha amiga Andréa Osório, antropóloga especializada nas relações humano/animal, contei a história da matança dos porcos. Ela ficou relativamente surpresa com o ritual porque embora conhecesse outros rituais de matança, os que vivi eram um tanto quanto diferentes. Vou contar agora o que contei para ela. Não se trata de um relato antropológico stricto sensu e eu jamais me meteria nas discussões antropológicas sobre as relações entre humanos e animais. Não tenho nenhuma entrada nesse campo. O relato deve ser lido como a descrição de uma memória de um homem que foi um menino meio da roça meio da cidade e depois virou antropólogo.

O ritual de matança dos porcos começava nas decisões sobre o momento certo de matá-los. Eles só eram imolados quando estavam gordos e bem crescidos, já estalando. Sabia-se que estavam prontos por intermédio de observações rotineiras diversas. Olha que pernilzão,  essa costelinha tá pedindo para ir para o prato já, que torresmo que vai dar, veja como está estalando. Para saber se estava estalando dava-se um tapa na “bunda” dos porcos e quando se ouvia um estalo sabia-se que era hora do bichinho, ou do bichão, virar comida. Daí iniciavam-se as tratativas para definir a hora certa.

A matança do porco dependia de uma logística relativamente complicada. Tinha que acontecer nos finais de semana porque envolvia outras pessoas da família extensa. Só os da casa não davam conta. Em geral, vinham o pai do meu tio, que era quem sabia matar o bicho, sua esposa, algum irmão de meu tio com a esposa e as crianças; e outros homens, amigos da região que iriam ajudar a segurar o bicho. Meu pai nunca participava porque “tinha pena”. Não se pode ter pena do bicho porque dizia-se que ele demora mais para morrer, sofre muito e até estraga a carne. Por isso, meu pai se recolhia e só aparecia bem mais tarde, quando o porco já estava morto e tinha virado petiscos, torresminhos e estava virando linguiça, costelinhas...

O pai do meu tio não tinha pena do bicho. Carregava um punhal que tinha entre 30 e 40 centímetros e sabia exatamente onde enfiá-lo, perto do “suvaco do bicho” para atingir o coração e permitir que o animal tivesse uma morte tranquila. Ele criticava muito aqueles que não sabiam “enfiar o punhal” porque acabavam dando várias punhaladas e faziam o bicho sofrer. No caso dele, a precisão o definia. Bastava uma única punhalada e o sangue jorrava como se fosse uma mangueira estourada. Era evidente que o coração fora atingido e logo o porco estaria morto. Enquanto o coração, mesmo apunhalado, ainda batia, recolhia-se o sangue que escorria para feitura do chouriço, uma iguaria que os porcos nos proporcionavam.

O pai do meu tio era tão sagaz que por vezes ele também segurava o bicho. Essa era a função principal dos homens. Usava uma mão para segurar e outra para apunhalar, e ainda dava bronca nos homens que não estavam “segurando direito”. Se não segurassem ele iria errar e o “bicho iria sofrer”. Ele sempre dizia: “ara, sô. Um bando de homi que não consegue segurar um bichinho desse. Bora, segura, sô”.

Em geral a bronca dele funcionava bem, mas quando os homens não seguravam direito ele mandava soltar. Daí deixavam o porco ficar mais calmo, relaxar, até que reiniciavam a matança. Quando isso acontecia, o pai do meu tio ficava bem bravo, mas logo se acalmava quando finalmente conseguia garantir a morte justa e serena do porquinho.

Depois de morto o porco dá um trabalhão danado. É necessário queimar os pelos, uma depilação que ocorre com muito álcool, foco e facas amoladas. Primeiro joga-se álcool em todo o corpo, depois o fósforo faz o papel dele. O fogo queima os pelos quase até a raiz e depois disso, raspa-se a pele queimada para retirar toda aquela matéria orgânica e deixar o porco bem limpinho. É necessário retirar os pelos até a raiz para que eles não “brotem na feijoada ou no torresmo”. Se os pelos não são totalmente retirados, quando as peles são cozidas ou fritas elas reduzem em tamanho e os pelos que já não apareciam mais acabam “brotando” estragando a estética do prato, o paladar dos comensais e deixando as cozinheiras envergonhadas. É por isso que não se pode usar uma simples gilete para depilar o porco. Além dos pelos serem muito grossos, a gilete não arranca a raiz dos pelos. Às vezes elas até eram usadas, mas o que resolvia mesmo era o fogo e a faca. Talvez hoje, as modernas ceras depiladoras dessem um jeito, mas não acredito muito.

Depois de queimado o porco é aberto pela barriga, retiram-se as vísceras e elas são lavadas, principalmente as tripas que depois de tratadas eram usadas para as linguiças e o chouriço. Daí o porco é progressivamente cortado, tratado, dividido. O ritual de divisão da carne é muito complexo e não caberia nesse post que já está ficando grande demais.

Mas, afinal, o que tudo isso tem a ver com masculinidade?

Bom, já dei algumas pistas. São os homens os responsáveis por matar, há uma hierarquia clara entre quem vai enfiar o punhal e os outros. Ser acusado de não segurar o porco direito é um ataque direto à masculinidade. Mas o que quero salientar para fechar o post é o meu lugar nisso tudo e um ponto específico do ritual que causou espanto à minha amiga na conversa de boteco.

Eu era um menino e como tal era lido como alguém que estava “aprendendo a ser homem”. Por isso, eu participava de tudo. Acordava cedo, antes de o dia raiar, ficava de papo tomando café, era vítima de todas as brincadeiras que homens adultos fazem com um moleque que quer lhes acompanhar, ajudava a segurar o bicho e finalmente chegou o dia em que virei homem.

Depois que as vísceras são retiradas, as costelas do porco ficam expostas e delas brota um “sangue ralo”, que conforme vai acumulado é retirado para compor o chouriço. Parte desse sangue, às vezes, é retirado com uma canequinha pequena e consumido pelos homens que mataram o bicho. Em uma das matanças, eu já estava longe dos homens, junto com minhas primas e quando começaram a beber o bicho eles me chamaram de volta. Fiquei surpreso com o chamado e corri até lá. Um deles me entregou a canequinha e disse: “vamos ver se é homem, já. Bebe o bicho”. Eu devia ter uns 10 ou 11 anos e não me fiz de rogado. Peguei a canequinha e bebi. Senti um gosto diferente. Esperava algo salgado e era também doce. Meio agridoce. É provável que eu tenha feito uma cara engraçada porque os homens caíram na gargalhada e disseram “tá aí, moleque. Agora virou homem. Sai fora daqui”.

Saí de lá todo pimpão ostentando aquela masculinidade adulta que eu acabara de receber depois de beber o bicho. Uma de minhas primas disse: “que nojo. Como é que você pode fazer isso? Vai lavar essa boca!”, ao que respondi: “eu não. Nojo nada. Isso é coisa de homem”.

Atualmente não há mais porcos criados em casa pela minha família. Houve muitas mudanças e passamos a ser mais urbanos do que rurais. Além disso, as normas sanitárias mudaram, o que também orientou mudanças culturais relacionadas aos bichos da casa e do quintal. Com isso, pelo menos no âmbito da minha família, os rituais de matança se perderam no tempo, junto com os rituais de masculinidade. Hoje não sei o que eu faria em meio a um ritual destes. Talvez reativasse o menino rural que ainda habita em mim, ou ficasse recolhido como meu pai para não atrapalhar a matança. Vai saber!


terça-feira, 15 de fevereiro de 2022

Petrópolis: tragédias são tragédias quando não são anunciadas.

Sou petropolitano e tragédias como a de hoje atravessam toda a minha vida. Já fui flagelado (é o termo que sempre usamos nessas situações), precisei abandonar uma das casas em que residi, a casa da minha infância, perdi amigos, familiares, vivi as dores da diáspora de vários que, como eu, de uma hora para outra viam seus mundos desaparecerem. Boa parte da minha família já perdeu tudo pelo menos uma vez. Alguns, mais de uma vez. 

Hoje uma prima perdeu todos os bens materiais. Um amigo de infância correu risco de vida ilhado em pleno centro da cidade, outros amigos estão apavorados com o que estão vendo, vivendo, sentido. 

As tragédias acontecem. Chove muito? Sim! Há encostas que deslizam? Sim! Os rios transbordam? Sim! Mas junto de tudo isso há décadas e décadas de total descaso dos poderes públicos com a cidade e todos os seus moradores. 

Petrópolis cresceu muito nos últimos 50 anos. Não vou encher esse post de dados porque não é esse o propósito. Cresceu muito, foi e é mal administrada. Boa parte da tragédia é simples tragédia, mas outro tanto é fruto de simples descaso. 

Nestes momentos todos sofrem e choram. Choram aqueles que foram diretamente atingidos e outros que não perderam nada, mas têm empatia com aqueles que perderam. 

A tristeza impera e ainda há muito por vir. Infelizmente está somente começando. 

E nesses momentos, como em tudo que é ruim no Brasil, quem mais sofre são os mais pobres, mais pretos, mais abandonados desde que nasceram. Perdem familiares, perdem amigos, perdem os bens materiais que nem têm para perder e morrem. 

É tragédia, é flagelo, é isso tudo. Mas também é muita incompetência das nossas gestões públicas nas últimas décadas. 

segunda-feira, 6 de setembro de 2021

Dona Lilica, a “mãozinha boa” e a opressão dos corpos na escola.

A transição da segunda para a terceira-série do primário era um momento importante para as crianças da minha geração. Atualmente essa terminologia não existe mais. Optei por mantê-la pelo fato de o texto tratar de um tempo histórico específico. Nós nos sentíamos grandes e iríamos para uma série que era “muito mais difícil do que as anteriores. As mães ficavam nervosas com isso e havia muita ansiedade para saber em qual turno e qual turma cada criança iria estudar.

Na minha escola, havia um “problema extra”. Todas as mães ficavam preocupadas com a possibilidade de os filhos irem para a turma da Dona Lilica. Dona Lilica é um nome fictício que estou usando aqui para contar essa história. Tratava-se de uma professora que tinha fama de má. Dizia-se que ela era formada em matemática e não admitia que nenhuma criança fosse aprovada sem que tivesse aprendido tudo o que ela tinha a ensinar. Eu realmente não sei se ela era formada em matemática. Era incomum na época ter professoras com uma formação diferente do normal e/ou da pedagogia, mas no imaginário da escola, sim, ela era a matemática.

Eis que quando fui enturmado lá estava eu na turma da Dona Lilica. Minha mãe ficou nervosa, conversou comigo. Minha tia, mãe de uma das minhas primas que estudava na mesma escola também ficou assustada e conversou com a minha mãe e comigo. Caramba! Agora não tinha jeito. Eu seria um aluno da Dona Lilica.

Fiquei apavorado! Além de ter que cursar a terceira-serie, ainda seria aluno da dona Lilica. Lembro-me de que as férias passaram e lá fui eu com meu uniforme novo, sapato vulcabraz 757 engrachadinho, cabelo cortado a contragosto em direção à turma.

Logo no primeiro dia cometi um erro crasso. Antes de qualquer coisa Dona Lilica perguntou quem ali era repetente. Eu não sabia o que era ser repetente. Levantem a mãos aqueles que não são repetentes, disse Dona Lilica. Fiquei lá com a mão abaixada.

Bom, vocês que são repetentes, saibam que não vão passar de ano só porque são repetentes. Eu não quero saber. Aqui, ou aprende ou não aprende, vociferava Dona Lilica no auge de sua cátedra. Daí perguntei para o colega ao lado, que era repetente, o que era isso, afinal. Ele me explicou e eu levantei a mão para desfazer o erro. A resposta de Dona Lilica foi a seguinte: você está bem, heim, grandão. Eu tinha, naquela época, quase a altura de Dona Lilica. Não sabe nem mesmo se é ou não repetente. Grande, grande e bobo desse jeito.

Depois de tamanha acolhida, começamos com a aula do dia, que era exatamente de matemática. Logo no primeiro dia! Eu já estava nervoso e fiquei mais ainda quando ouvi: você, grandão, explique aí como se monta uma divisão com três algarismos. Você fala e eu escrevo. Gaguejei solenemente por alguns segundos e Dona Lilica finalizou: era o que eu esperava mesmo. Pode até não ser repetente, mas não sabe nada. Na verdade, ninguém sabia. Ninguém tinha aprendido ainda, mas a turma permaneceu em silêncio como se dominasse plenamente a operação. Mesmo assim, lá foi Dona Lilica retomar o conceito de divisão para depois iniciar a discussão sobre divisão com 3 algarismos.

Meu maior problema com Dona Lilica, no entanto, não foi a matemática. A questão toda era minha mão. Eu tinha uma mão ruim na perspectiva dela. Uma das minhas mãos era ruim porque a outra era boa, a “mãozinha boa”. Certa vez ela me chamou para receber uma das atividades que ela tinha corrigido. Quando cheguei em sua mesa, estendi a mão esquerda e ela me disse: “essa não, menino. Pegue com a mãozinha boa”. Realmente não entendi do que se tratava, mas a “mãozinha boa” só podia ser a direita porque eu só tinha duas. Estiquei a mão direita e ela me entregou a tarefa.

Eu não sabia bem o que estaca acontecendo. Anos mais tarde, descobri que eu tinha uma tendência a ser ambidestro. Eu usava as duas mãos indiscrimidadamente, inclusive para pintar, escrever, etc, e isso era inconcebível para Dona Lilica. Ela logo entendeu que minha letra era horrível por conta de eu usar às vezes a “mão ruim”. Logo, eu tinha que aprender a usar somente a “mãozinha boa”. Ela chamou minha mãe para conversar e disse: a letra desse menino é uma porcaria. Ninguém entende nada. Compre um caderno de caligrafia para ele e eu vou passar exercícios de caligrafia todos os dias e ele só pode fazer com a “mãozinha boa”. Nem minha mãe entendeu aquilo até que Dona Lilica puxou minha “mãozinha boa” e disse: “essa aqui é a mãozinha boa. Só pode escrever com essa”

Eu fiquei muito encucado com aquilo. Por que, afinal, a minha mão esquerda era tão ruim? Ela nunca tinha feito nada contra a Dona Lilica. E mesmo assim era permanentemente torturada! “coloca essa mão ruim para trás, menino. Aqui, só com a mãozinha boa”.

E lá fomos nós, um longo ano em que a pobre coitada da minha mão esquerda fora oprimida na sala de aula da Dona Lilica. No final das contas, a minha letra continuou horrorosa, é assim até hoje. Eu passei de ano mesmo assim, e o que aconteceu é que minha mão esquerda ficou de escanteio. Acabei destro para a maioria das tarefas.

É curioso porque muitos anos depois eu tive contato com a obra do Robert Hertz, que escreveu um texto com o sugestivo título: “a preeminência da mão direita: um ensaio sobre a polaridade religiosa”. Ele foi um sociólogo francês que morreu em serviço na primeira guerra mundial e teve, por isso, sua carreira interrompida. Ele nos deixou esse belíssimo texto no qual ele explica toda a cosmologia relacionada às oposições entre as mãos direita e esquerda. No ensaio, ele critica severamente quaisquer explicações meramente biológicas para o uso majoritário da mão direita e descreve todo o universo sociocultural representado por essa oposição entre as mãos. Quando o li, ainda na graduação, lembrei-me de Dona Lilica.

Hoje, na pandemia, decidi ver se eu ainda conseguiria escrever e pintar com a mão esquerda. Faço diversas coisas com ela, mas não essas duas. Conversei muito com minha mão para livrá-la do trauma de ter sido estigmatizada como uma mão ruim. Ela já elaborou tudo e está até conseguindo escrever algumas coisinhas, mas com muita dificuldade. Infelizmente, a crença de Dona Lilica na existência de uma “mãozinha boa” em posição superior à “mãozinha ruim” contribuiu para que eu abandonasse todas as possibilidades trazidas pela ambidestria. Acredito que eu teria acessado outros processos cognitivos caso tivesse investido nas possibilidades da minha “mãozinha ruim” ao invés de oprimi-la e estigmatizá-la.

Enfim, não culpo ninguém. Nem mesmo Dona Lilica. Meu irmão caçula mais tarde conviveu com a Dona Lilica também. Ele, que sempre foi bem menos obediente do que eu, levava a Dona Lilica no bico o tempo todo. Ela o adorava e era outra mulher também. Não sei o que aconteceu de bom na vida dela, mas algo aconteceu. Ela nem mesmo era chamada de Dona Lilica. Tinha abandonado o nome em prol de um doce apelido, que não poderei contar aqui para não denunciá-la.

E por que não vou denunciá-la? Simplesmente porque não foi só culpa dela. Como o próprio Hertz explica, a polaridade esquerda versus direita quando se trata das mãos não tem nada de natural. É social. Dona Lilica fora totalmente doutrinada por esse universo social dividido e não conseguiu sair dele. Também parece-me muito evidente que ela nunca lera o Hertz. Fica a dica!

Deixo aqui um beijo para a senhora, Dona Lilica. A senhora deve estar bem velhinha. Por isso, deixo também um afago na cabeça, mas feito com a “mãozinha ruim”. Espero que a senhora goste!