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Sou um antropólogo brasileiro especializado em temas educacionais. Meus trabalhos focalizam as relações existentes entre a educação escolar e outras esferas da vida social. Atualmente, desenvolvo pesquisas sobre estratégias familiares e projetos de escolarização nas camadas populares das cidades do Rio de Janeiro e Petrópolis, ambas no Brasil. A abordagem inclui reflexões sobre a educação básica e o ensino superior. O debate sobre a construção social das juventudes é privilegiado porque permite interpretações refinadas sobre as relações entre educação escolar e expectativas de futuro. Trabalho no Departamento de Fundamentos da Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro-UFRJ onde ensino antropologia e sociologia da educação, além de orientar estudantes interessados no debate entre ciências sociais e educação.

quinta-feira, 6 de outubro de 2022

Um lanchinho frugal, a morte e a vida que fica: homenagem ao meu pai.

 

Meu pai morreu na terça-feira, dia 04 de outubro de 2022, à noite, por conta de uma parada cardiorrespiratória. Tinha 81 anos. Desde 2019 ele vinha lutando contra um conjunto de doenças severas: Parkinson, diabetes, doença renal crônica, pneumonias sucessivas. Foi uma batalha gloriosa e muito severa. Estive ao lado dele durante todo esse período e aprendi muito sobre a existência humana em seus princípios mais elementares.

Ele foi um humano típico. Errou, acertou, brigou, reconciliou, praguejou contra o que considerava injusto, deu e recebeu carinho, agregou pessoas, separou pessoas. Nunca teve qualquer autocensura sobre o que pensava, de forma que simplesmente abria a boca e deixava o que estava na cabeça sair, por vezes inundando os ambientes com a acidez do que vociferava com a enorme voz que possuía.

Nos últimos anos estivemos muito juntos e nos últimos meses fizemos algumas viagens – de Petrópolis ao Rio de Janeiro – para ele realizar exames e consultas médicas. Essa convivência me permitiu sentir o quanto aquele homem amava viver; sabia que estava em seus momentos finais e os aproveitava como se fossem os últimos.

Em uma dessas viagens, paramos para fazer um lanche. Estávamos eu, ele e meu irmão caçula. Comprei uns croquetes e água para comermos no carro mesmo. Ele já não andava e era muito difícil retirá-lo do carro, colocá-lo à mesa. Tudo era muito difícil e cansativo para ele. Por isso, ficamos ali no carro sentados, ouvindo chorinho e comendo os croquetes. A deglutição dele estava muito prejudicada. Demorava para morder, mastigar, engolir e se engasgava toda hora. Foi assim com o primeiro croquete. Engasgou tanto que eu e meu irmão ficamos preocupados e decidimos não dar o segundo. Não ali. Daríamos quando ele chegasse à clínica na qual estava internado. Ficou puto, me olhou com cara feia e disse “me dá o segundo bolinho”. Não dei. Disse que daria quando chegássemos à clínica. Aceitou sem concordar e seguimos. Durante o restante da viagem estendeu a mão e me pediu o croquete sei lá quantas vezes, e quando eu dizia que ele comeria na clínica, ele afirmava: “não vai ser a mesma coisa”.

Já em Petrópolis, decidi parar o carro e dar o croquete antes de chegarmos à clínica. Feliz da vida, começou a comer de novo, engasgou-se de novo. Ficou ali, literalmente lutando com aquele croquetinho. Perguntei se estava bom e ele disse: “tá, mas quentinho lá na loja estava muito melhor”. Depois disso chegou à clínica todo feliz, contando para os enfermeiros que tinha feito um lance muito gostoso, mesmo assim queria almoçar.

Noutra viagem, assim que entrou no carro fez o ritual de sempre. Apontou para o rádio do carro pedindo a musiquinha, o chorinho que ele gostava e não entendia bem de onde saia. Eu usava o celular, com uma playlist de chorinhos clássicos e aquilo tudo era um grande mistério para alguém que nasceu e viveu a maior parte da vida sem internet. Musiquinha ligada, vem a pergunta: “vai ter bolinho?”. Ele estava descendo para fazer uma consulta séria, que definiria o tratamento dele a partir dali e só tinha uma preocupação: se teria bolinho no retorno. Depois, um dos enfermeiros que cuidava dele me contou que havia outra: a roupa. Ele reclamava muito enquanto estavam escolhendo as roupas dele porque queria vir ao Rio bem bonito e sem roupas repetidas. Bruno, o enfermeiro, achava graça e o tratava como se também fosse filho dele. Bruno é um dos melhores profissionais que conheci nestes tempos. Todos que trabalham na clínica são excelentes, mas Bruno é excepcional. Meu pai o adorava e ele ao meu pai. Como diz a minha mãe, foi um encontro de almas.

No meio do caminho de volta, ele me perguntou algumas vezes: “tá chegando o bolinho”. Eu respondia que sim, mas o tempo para ele era urgente e como uma criança pequena só sossegava quando chegava à lanchonete. Comemos bolinhos de novo, engasgou-se novamente; ficamos ali parados: eu, ele e meu irmão, por quase uma hora enquanto ele comia os seus dois croquetes.

Neste dia ele percebeu que eu e meu irmão também comemos um éclair de chocolate. Depois que finalmente terminou os bolinhos eu perguntei: vamos? E ele: “não! E meu chocolate?” Não dei o chocolate. Era demais para quem iria subir serpenteando a serra de Petrópolis. Não dava para assumir o risco de um engasgo, vômito... tudo era muito perigoso. Prometi o chocolate para a outra viagem, mas infelizmente não deu tempo. Ele chegou contente na clínica, feliz com a viagem, o lanche, pronto para almoçar e ir para a cama.

Toda essa história foi contada para sublinhar o que ele me ensinou. Cada segundo da vida vale a pena. Um homem doente, impossibilitado de andar, que precisava de quase uma hora para comer dois croquetes, com dores permanentes em várias partes do corpo, acometido por um cansaço enorme quando fazia qualquer atividade e, ao mesmo tempo, absolutamente realizado por fazer um lanche com os filhos e poder aguardar o próximo, com chocolate. A vida dele valeu a pena. Agora morreu, mas vive em mim, no meu irmão caçula, na minha irmã, na minha mãe e em todas as pessoas com as quais ele conviveu. E todos nós somos o que somos também porque ele viveu.

Aproveitem cada segundo com seus pais. Encontrem toda a vida que está presente em um lanchinho frugal e façam isso o quanto antes. Nunca sabemos quando vai acabar. Esses momentos permitem que nós compartilhemos as nossas existências em toda amplitude do que significa existir. Tenho certeza de que o “seu João” viveu e morreu sabendo disso. Muito obrigado, pai.