Ângela Diniz foi uma socialite influente na segunda metade do século passado. Ela teve a sua vida abreviada, assassinada por Raul Fernando do Amaral Street. O crime deu origem a um dos julgamentos mais controversos da história do direito penal Brasileiro. Nele, a vítima foi transformada em algoz de sua própria morte, e esse argumento nonsense foi suficiente para convencer o tribunal do júri em primeira instância. O crime foi tratado como um “crime de honra” e, por isso, o assassino foi visto como vítima. Embora inacreditável, esse argumento esteve presente em nossos tribunais por longos anos. O assassino era conhecido por um apelido – Doca – e, por isso, o caso ficou conhecido na imprensa como “caso Doca Street”.
Quando
eu fiz doutorado, fui orientado pela Mirian Goldenberg que, dentre muitos livros,
escreveu um sobre outra Diniz, a Leila, que também morreu jovem, mas em um acidente
de avião. O livro se chama “Toda Mulher é Meio Leila Diniz”, e já teve várias
edições desde que foi lançado na década de 90 do século passado. Por conta do
convívio com a Mirian, e das leituras de dezenas de textos acadêmicos relacionados
às mulheres em específico e às relações de gênero em termos mais gerais,
aprendi que em muitos casos as mulheres são punidas pela sociedade simplesmente
por desejarem ser livres para definir seus destinos e suas relações afetivas.
Leila Diniz foi idolatrada e punida. Endeusada e achincalhada, assim como Ângela
Diniz. Ambas pagaram o preço pela liberdade, e foram mulheres que anteciparam
comportamentos que só viriam a se consolidar muitos anos mais tarde. Elas
bancaram todas as punições e os julgamentos sociais porque queriam ser livres
para decidir o que fariam de suas próprias vidas.
É curioso
pensar que precisei dessas leituras para perceber esse fenômeno tão corriqueiro,
da punição social das mulheres que desejavam escolher as vidas que queriam
viver. Eu tinha 22 anos na época, recém-chegado de uma cidade do interior onde
as relações de gênero eram muito demarcadas e, também por isso, naturalizadas e
quase nunca relativizadas no âmbito das interações cotidianas. Havia muitos
casamentos tradicionais, minhas colegas de turma do ensino médio – não todas - pensavam
em casar e ter filhos ainda muito jovens, montar uma casa, cuidar de seus
maridos e de seus filhos, quase um comercial de Doriana.
Para
quem é mais jovem e não viu ou não lembra do famoso comercial que deu origem à
ideia de “família Doriana”, pode assisti-lo aqui: https://www.youtube.com/watch?v=avyxVkaaRtM.
Doriana era uma margarina famosa na época. No comercial, uma mãe aparece
correndo para lá e para cá, preparando alimentos, sempre com Doriana, servindo
ao marido, aos filhos e aos avós que chegam na casa. No jingle, ao final,
tem-se a pérola: “aqui tem Doriana a gente logo vê, os elogios são para você”. A
dubiedade é a seguinte: a dona da casa corre para lá e para cá, não come, serve
todo mundo e no final quem recebe os elogios é a margarina, não ela. Em
síntese, para ser mulher você tem correr o tempo todo, não comer nada, agradar
a todo mundo e ao final não receber nem mesmo os elogios por tudo o que fez. Esse
era o recado do comercial para as mulheres da época.
A propósito:
eu detestava Doriana. Era uma margarina terrível!
Mas
o que isso tudo tem a ver com as duas Diniz – a Ângela e a Leila?
É
simples, elas nunca quiseram uma “família Doriana”. Optaram por uma vida
diferente, livre e desimpedida. Tiveram vários namorados, assumiram posturas
controversas na grande mídia, não se preocuparam com o que era esperado de uma “moça
de família” e seguiram com seus projetos de vida.
Eu
me lembrei da Ângela Diniz por causa do podcast Praia dos Ossos. Uma amiga
querida, futura antropóloga, me indicou esse podcast dizendo que estava
impressionada com o caso, que ela não conhecia até então. O podcast foi idealizado
e é apresentado pela jornalista Branca Vianna. Está disponível na radio novelo
(https://www.radionovelo.com.br/praiadosossos/)
por intermédio de vários aplicativos de som.
O
nome “Praia dos Ossos” foi escolhido porque Ângela Diniz foi assassinada em uma
casa na praia dos ossos, em Búzios. Não vou dar spoiler sobre o material. Vale muito
a pena ouvir. Só queria destacar o intenso trabalho investigativo que foi
realizado pela jornalista e por toda a sua equipe. Elas buscaram imagens de
época, jornais, entrevistaram as pessoas que tiveram algum envolvimento
(incluindo Doca Street), visitaram os cenários. Em síntese, um trabalho imenso
com alguns bons tons de investigação etnográfica. Os podcasts são uma ótima novidade
na minha visão, e esse tipo de podcast investigativo abre um campo de atuação
bem interessante para antropólogas e antropólogos que desejam trabalhar com
fatos históricos, dentro e fora da Universidade.
Ouçam “praia dos ossos”. Vale muito a pena! Esse trabalho, em minha visão, ajuda muito na relativização de preconceitos e discriminações de gênero e, consequentemente, no combate às desigualdades relacionadas a esses preconceitos e a essas discriminações.
Referências:
Site da Rádio Novelo:
https://www.radionovelo.com.br/praiadosossos/
GOLDENBERG, M.. Toda mulher é Meio Leila Diniz. 2. ed. Rio de Janeiro: Record, 1995. 251p .