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Esse
texto visa homenagear as trabalhadoras e os trabalhadores dos serviços
essenciais. Muito obrigado a vocês que estão colocando as suas vidas em risco
permanente em prol da saúde de todos nós.
Eu ministro uma disciplina no Programa de Pós-Graduação
em Educação da UFRJ chamada “estudos etnográficos em educação”. O curso envolve
um debate sobre etnografia, teoria e produção de conhecimento antropológico;
além de entrar nas minúcias dos bastidores do trabalho de campo de antropólogos
brasileiros e estrangeiros, e discutir estudos etnográficos na educação.
Certa
vez, em uma das aulas, um dos alunos perguntou: “mas professor, o que leva uma
pessoa a querer fazer uma etnografia?” Ele justificou a questão afirmando que
estava evidente que a etnografia provocava uma série de experimentações
subjetivas no antropólogo(a), e também causava sofrimentos os mais diversos.
Por isso, ele não entendia por quais motivos alguém poderia desejar isso.
A
questão foi tão perspicaz que acabou tomando boa parte daquela aula. Eu
comentei que a opção pela abordagem etnográfica envolve entregas subjetivas
significativas. O(a) antropólogo(a) precisa estar disposto a relativizar até
mesmo os aspectos mais básicos da sua própria cultura, para conviver com outras
pessoas que, por vezes, pensam e sentem o mundo de formas totalmente
diacrônicas às suas. Esse processo de convivência envolve uma série de crises
existenciais que recheiam capítulos iniciais de etnografias e os diários de
campo dos(as) etnógrafos(as). As etnografias só são possíveis exatamente porque
os(as) etnógrafos(as) escolhem estar em campo e, consequentemente, escolhem
viver também todas essas crises. Agora, o que tudo isso tem a ver com o coronavírus?
A
eclosão da pandemia de coronavírus trouxe consequências significativas para as
interações sociais. De uma hora para outra fomos obrigados – aqueles que são
mais privilegiados – a permanecer em casa, trancados, em isolamento social.
Esse novo lugar social ocupado por todos nós em medidas diferentes nos obrigou
a reconfigurar nossas vidas cotidianas e nossos relacionamentos pessoais,
profissionais, afetivos, sexuais. Em síntese, tivemos que mergulhar em um mundo
desconhecido que até então simplesmente não existia. Esse mergulho,
comparativamente, é semelhante ao mergulho do etnógrafo. Porém, há duas
dessemelhanças. A primeira delas é que o antropólogo(a) escolhe mergulhar nas
culturas dos outros enquanto todos nós fomos obrigados a mergulhar na cultura
do corona-vírus. A outra é que o(a) antropólogo(a) mergulha em uma cultura
sobre a qual tem algum nível de conhecimento e reconhece sua existência. Nós
não conhecemos nada sobre a cultura do isolamento social e nem mesmo oferecemos
a ela o estatuto de realidade.
Ainda
que existam diferenças significativas, os exercícios etnográficos nos ajudam a
sobreviver em tempos de cultura corona vírus. A principal ajuda refere-se à
crise inicial proporcionada pelo mergulho em culturas desconhecidas. A
subjetividade do(a) antropólogo(a) necessariamente fica tensionada e ele entra
em uma crise existencial ao deparar-se com uma cultura tão diferente da sua. A
temporalidade da crise será equivalente ao tempo que o antropólogo utilizará
para aceitar novas formas de falar, andar, comer, vestir, conversar, entre
outras. Quando aceita, a crise ganha outras tonalidades e só volta mais
intensamente quando ele retorna para a própria cultura. Essa regra vale tanto
para antropólogos(as) que pesquisam culturas exóticas quanto para aqueles que
pesquisam culturas familiares. Ainda que realizado em culturas familiares, o
mergulho etnográfico provoca crises existenciais causadas pela dinâmica
familiar-exótico-exótico-familiar, descrita em detalhe nos textos de Roberto Da
Matta e Gilberto Velho na segunda metade do século passado.
Nosso
mergulho na cultura corona não foi escolhido por nós e consequentemente teremos
crises existenciais provavelmente mais intensas. A experiência dos(as)
etnógrafos(as) nos diz que o melhor caminho é aceitar esse mergulho e
experimentar essas novas formas de cultura. Ninguém sabe ainda como será o
mundo pós-corona vírus, mas o fato é que já estamos vivendo nele. Negá-lo, além
de causar sofrimento subjetivo também contribui para o aumento da tragédia
trazida por essa pandemia. Fiquemos em casa, construamos um novo mundo de
nossas janelas físicas e virtuais e agradeçamos a todos aqueles que não podem
ficar em suas casas e estão salvando nossas vidas enquanto colocam as deles em
risco permanente.
Muito
obrigado aos trabalhadores e trabalhadoras da saúde e de todos os serviços
essenciais. Não há nada que pague o que vocês estão fazendo por nós.
Referências bibliográficas citadas:
DAMATTA, Roberto. “O
ofício do etnólogo. Ou como ter anthropological
Blues”. Rio de Janeiro: Boletim do Museu Nacional (27).
1978.
VELHO, Gilberto.
Observando o Familiar. In: VELHO, Gilberto. Individualismo e Cultura: notas
para uma antropologia da sociedade contemporânea. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 1999.