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Sou um antropólogo brasileiro especializado em temas educacionais. Meus trabalhos focalizam as relações existentes entre a educação escolar e outras esferas da vida social. Atualmente, desenvolvo pesquisas sobre estratégias familiares e projetos de escolarização nas camadas populares das cidades do Rio de Janeiro e Petrópolis, ambas no Brasil. A abordagem inclui reflexões sobre a educação básica e o ensino superior. O debate sobre a construção social das juventudes é privilegiado porque permite interpretações refinadas sobre as relações entre educação escolar e expectativas de futuro. Trabalho no Departamento de Fundamentos da Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro-UFRJ onde ensino antropologia e sociologia da educação, além de orientar estudantes interessados no debate entre ciências sociais e educação.

sexta-feira, 1 de maio de 2020

Pode a etnografia contribuir com a vida em tempos de cultura corona?



O conteúdo desse post também está disponível em formado podcast, no link:


Esse texto visa homenagear as trabalhadoras e os trabalhadores dos serviços essenciais. Muito obrigado a vocês que estão colocando as suas vidas em risco permanente em prol da saúde de todos nós.
        Eu ministro uma disciplina no Programa de Pós-Graduação em Educação da UFRJ chamada “estudos etnográficos em educação”. O curso envolve um debate sobre etnografia, teoria e produção de conhecimento antropológico; além de entrar nas minúcias dos bastidores do trabalho de campo de antropólogos brasileiros e estrangeiros, e discutir estudos etnográficos na educação.
Certa vez, em uma das aulas, um dos alunos perguntou: “mas professor, o que leva uma pessoa a querer fazer uma etnografia?” Ele justificou a questão afirmando que estava evidente que a etnografia provocava uma série de experimentações subjetivas no antropólogo(a), e também causava sofrimentos os mais diversos. Por isso, ele não entendia por quais motivos alguém poderia desejar isso.
A questão foi tão perspicaz que acabou tomando boa parte daquela aula. Eu comentei que a opção pela abordagem etnográfica envolve entregas subjetivas significativas. O(a) antropólogo(a) precisa estar disposto a relativizar até mesmo os aspectos mais básicos da sua própria cultura, para conviver com outras pessoas que, por vezes, pensam e sentem o mundo de formas totalmente diacrônicas às suas. Esse processo de convivência envolve uma série de crises existenciais que recheiam capítulos iniciais de etnografias e os diários de campo dos(as) etnógrafos(as). As etnografias só são possíveis exatamente porque os(as) etnógrafos(as) escolhem estar em campo e, consequentemente, escolhem viver também todas essas crises. Agora, o que tudo isso tem a ver com o coronavírus?
A eclosão da pandemia de coronavírus trouxe consequências significativas para as interações sociais. De uma hora para outra fomos obrigados – aqueles que são mais privilegiados – a permanecer em casa, trancados, em isolamento social. Esse novo lugar social ocupado por todos nós em medidas diferentes nos obrigou a reconfigurar nossas vidas cotidianas e nossos relacionamentos pessoais, profissionais, afetivos, sexuais. Em síntese, tivemos que mergulhar em um mundo desconhecido que até então simplesmente não existia. Esse mergulho, comparativamente, é semelhante ao mergulho do etnógrafo. Porém, há duas dessemelhanças. A primeira delas é que o antropólogo(a) escolhe mergulhar nas culturas dos outros enquanto todos nós fomos obrigados a mergulhar na cultura do corona-vírus. A outra é que o(a) antropólogo(a) mergulha em uma cultura sobre a qual tem algum nível de conhecimento e reconhece sua existência. Nós não conhecemos nada sobre a cultura do isolamento social e nem mesmo oferecemos a ela o estatuto de realidade.
Ainda que existam diferenças significativas, os exercícios etnográficos nos ajudam a sobreviver em tempos de cultura corona vírus. A principal ajuda refere-se à crise inicial proporcionada pelo mergulho em culturas desconhecidas. A subjetividade do(a) antropólogo(a) necessariamente fica tensionada e ele entra em uma crise existencial ao deparar-se com uma cultura tão diferente da sua. A temporalidade da crise será equivalente ao tempo que o antropólogo utilizará para aceitar novas formas de falar, andar, comer, vestir, conversar, entre outras. Quando aceita, a crise ganha outras tonalidades e só volta mais intensamente quando ele retorna para a própria cultura. Essa regra vale tanto para antropólogos(as) que pesquisam culturas exóticas quanto para aqueles que pesquisam culturas familiares. Ainda que realizado em culturas familiares, o mergulho etnográfico provoca crises existenciais causadas pela dinâmica familiar-exótico-exótico-familiar, descrita em detalhe nos textos de Roberto Da Matta e Gilberto Velho na segunda metade do século passado.
Nosso mergulho na cultura corona não foi escolhido por nós e consequentemente teremos crises existenciais provavelmente mais intensas. A experiência dos(as) etnógrafos(as) nos diz que o melhor caminho é aceitar esse mergulho e experimentar essas novas formas de cultura. Ninguém sabe ainda como será o mundo pós-corona vírus, mas o fato é que já estamos vivendo nele. Negá-lo, além de causar sofrimento subjetivo também contribui para o aumento da tragédia trazida por essa pandemia. Fiquemos em casa, construamos um novo mundo de nossas janelas físicas e virtuais e agradeçamos a todos aqueles que não podem ficar em suas casas e estão salvando nossas vidas enquanto colocam as deles em risco permanente.
Muito obrigado aos trabalhadores e trabalhadoras da saúde e de todos os serviços essenciais. Não há nada que pague o que vocês estão fazendo por nós.

Referências bibliográficas citadas:
DAMATTA, Roberto. “O ofício do etnólogo. Ou como ter anthropological Blues”. Rio de Janeiro: Boletim do Museu Nacional (27). 1978.
VELHO, Gilberto. Observando o Familiar. In: VELHO, Gilberto. Individualismo e Cultura: notas para uma antropologia da sociedade contemporânea. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999.