O frio dos Cariocas e o frio do Brasil
Hoje, para os padrões
cariocas, está frio. Talvez até muito frio. Para os cariocas, não há nada mais
estranho no Rio de Janeiro do que o frio. Eu não sou carioca e quase tenho
vergonha de dizer isso por aqui, mas gosto do frio. Minha mulher quase me mata
quando digo isso porque ela, carioca da gema, já está com todas as janelas
fechadas para que o frio não a ataque e acabe com toda sua "carioquidade".
Talvez um dos melhores
elementos orientadores da cultura carioca seja o sol e o calor que ele
proporciona. Se domingo for dia de sol é dia de ir para a praia, tomar um
chope, conversar com amigos, caminhar na orla, visitar as paineiras, ficar de
bobeira... Se não for dia de sol, ao contrário, o mundo acaba para os cariocas
e não se faz nada disso.
Fiquei pensando nestas questões porque acabei de ler
um artigo do Vitor Ramil chamado “A estética do Frio”. Para quem não o conhece,
Vitor Ramil é um compositor, cantor e escritor gaúcho. Ele escreveu este texto
como uma viagem introspectiva à sua própria identidade gaúcha. Ele diz que o
frio define os gaúchos para o resto do Brasil e que, como causa e consequência,
também define o gaúcho para o próprio gaúcho. O artigo completo está disponível
em: http://minerva.ufpel.edu.br/~ramil/vitor/estfrio.htm
Este artigo veio como dom em um circuito de
reciprocidade que tenho desenvolvido com meu amigo Luiz Colatto. Colatto também
é um homem do sul e, nesta lógica, assim como Vitor Ramil, é um homem do frio. Agora
fora do sul, ele estranha quando se apresenta como um homem do sul e todos,
imediatamente, dizem que faz muito frio lá, mesmo aqueles que nunca foram ao
Sul. Ponto para o Vitor Ramil! O frio define os gaúchos para o resto do Brasil
e eu diria que define todas as pessoas que vivem no sul. A representação é
maior até mesmo que os gaúchos.
Confesso que quando fui pela primeira vez a Porto Alegre
estava buscando o frio. E o encontrei! Mas não era um frio tão frio assim. O inverno
de Petrópolis não fica tão atrás. Para meus colegas que estavam no mesmo
congresso, pelo contrário, o frio era o frio mais frio do mundo. Todos estavam com
gorros, cachecóis, botas de couro, casacos e mais casacos. Além disso,
reclamavam o tempo todo porque estavam no frio, mas também estavam felizes por
isso.
Esta conversa sobre a relação dos homens com as
intempéries da natureza é uma das pedras de toque da antropologia. Marcel Mauss
foi um dos pioneiros quando analisou as variações sazoneiras das sociedades
esquimó e identificou que dois povos que viviam no frio se relacionavam com ele
de maneira diferente. O ponto trazido por Mauss é preciso: os homens se
relacionam com a natureza em um tipo de interação nada mecânica. Simbolizam o
frio e o calor e os transformam em elementos integrantes de sua identidade
cultural.
Os cariocas se opõem aos gaúchos. Os gaúchos são "homens
do frio" e os cariocas, "homens do calor". O mais curioso nesta história é que a
gente sempre esquece que os cariocas também lidam com o frio e que os gaúchos
também têm verão. Mesmo assim, talvez
possamos dizer que o verão define os cariocas na mesma medida em que o inverno
define os gaúchos. Os cariocas, agora, como minha mulher, fogem do frio, fecham
as janelas e resguardam sua “carioquidade” à espera do verão. Para os gaúchos,
ao contrário, é hora de expandir toda sua “gauchidade”. Vale a pena observar as
cidades nestes momentos. No Rio, acreditem, há cachecóis e tocas pelas ruas.
Você já usou um cachecol no Rio? Eu não! Afinal, sou serrano e tenho um pacto
simbólico com os “homens do frio”.
Viva o frio!!