Sou antropólogo e
ministro aulas de sociologia e antropologia da educação. Em ambas, procuro trabalhar
para a construção do “olhar relativizador”. Todos os meus alunos são incentivados a
descrever situações abrindo mão de adjetivos e advérbios de intensidade. O objetivo
é impedir que os escritores apresentem realidades para os leitores que existem
apenas na cabeça de quem faz a narração.
Para aprender a
descrever, os estudantes precisam levar a lição de Durkheim às últimas consequências.
É preciso abandonar “pré-noções” e “juízos-de-valor” buscando uma análise o
mais neutra possível. Na sequência, os estudantes aprendem que um escritor
experiente pode disfarçar todos os seus preconceitos em um texto descritivo
abandonando, inclusive, quaisquer adjetivos e advérbios de intensidade. Neste momento
eles percebem que as questões são mais complexas.
A questão posta é a
seguinte: para aprender a escrever é fundamental saber ler um certo tipo de
leitura. Qual seja: uma leitura que busque abandonar as lentes que fazem com
que vejamos a realidade com base em uma única e limitadora perspectiva. A base
para o início do trabalho é abandonar a tentação de ler a vida como ela está
posta em nossas cabeças e buscar a vida que está na cabeça dos outros,
valorizando o “ponto de vista nativo” relacionado às situações analisadas.
Quando utilizo estes
exercícios em aulas relacionadas aos processos de segmentação presentes nos sistemas
escolares provoco os estudantes pedindo que expliquem o baixo desempenho dos
alunos em áreas de baixo nível sócio econômico. Peço que falem, apresentem sua
visão pessoal, utilizem os autores já discutidos para pensar sobre a questão e
busquem análises neutras.
Há, nestas aulas, um
fenômeno curioso. Em todas elas os “pobres” ou as “classes populares” são
pensados como uma grande massa homogênea. Falas como “não dá pra esperar que
uma criança pobre tenha o mesmo desempenho de uma criança de classe média”, “é
necessário entender que as famílias pobres têm baixas expectativas educacionais”,
“não podemos esquecer que o contexto em que as crianças são criadas influencia
a relação que elas desenvolvem com a escola”, “os pobres acabam aceitando
qualquer escola para os filhos” aparecem em todos os debates.
De início, incentivo as
falas, instigo debates e, curiosamente, os estudantes tendem a concordar que a
relação que os mais pobres desenvolvem com a escola é uma relação de submissão aos
desígnios da própria escola. Importante indicar que não trabalho somente com
estudantes de classe média. Há, principalmente nas licenciaturas, número
significativo de estudantes oriundos das classes populares.
Depois desta tempestade
de ideias, critico todas as falas e apresento os dados da pesquisa que estou
realizando. O objetivo da investigação é mapear e analisar as justificativas de
escolha e as estratégias de acesso utilizadas por pais e responsáveis que
desejam ou precisam matricular os filhos no sistema municipal de educação do
Rio de Janeiro. Neste momento, os estudantes descobrem que as famílias
populares devem ser pensadas no plural. Há famílias com baixas expectativas
educacionais que, de fato, aceitam os desígnios da escola. Porém, também
existem famílias que conhecem e reconhecem a qualidade das melhores escolas da
rede municipal e utilizam todas as estratégias presentes em seus campos de
possibilidades para matricular os filhos nestas escolas. Há pais que buscam
ajuda na burocracia municipal, que passam o ano inteiro visitando as escolas e
acompanhando seus filhos, que buscam publicações sobre desempenho escolar e
que, principalmente, incentivam seus filhos a dar o melhor de si para a escola.
Depois que apresento os
dados, os alunos pedem a palavra novamente e começam a contas dezenas de
histórias de famílias populares que se esforçaram para conseguir vagas nas
melhores escolas. Ao final destas aulas, alguns estudantes me procuram
individualmente para contar suas histórias e o papel de seus pais. Já ouvi
muitos relatos e todos indicam que se não fosse pela insistência de seus pais
durante a educação básica, eles não teriam estudando em escolas publicas de
qualidade e, como consequência, em sua visão, não estariam na UFRJ.
Estes exercícios
permitem perceber a força de representações coletivas que associam pobreza
material a baixo desempenho escolar e expectativas negativas relacionadas aos
processos educacionais. Quando problematizamos estas classificações percebemos que
os pobres são plurais e que também há, entre os pobres, alto desempenho e expectativas
positivas sobre a escola e a capacidade de seus filhos.
E
você, conhece alguma historia de sucesso escolar nos meios populares?