Quem sou eu

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Sou um antropólogo brasileiro especializado em temas educacionais. Meus trabalhos focalizam as relações existentes entre a educação escolar e outras esferas da vida social. Atualmente, desenvolvo pesquisas sobre estratégias familiares e projetos de escolarização nas camadas populares das cidades do Rio de Janeiro e Petrópolis, ambas no Brasil. A abordagem inclui reflexões sobre a educação básica e o ensino superior. O debate sobre a construção social das juventudes é privilegiado porque permite interpretações refinadas sobre as relações entre educação escolar e expectativas de futuro. Trabalho no Departamento de Fundamentos da Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro-UFRJ onde ensino antropologia e sociologia da educação, além de orientar estudantes interessados no debate entre ciências sociais e educação.

terça-feira, 28 de julho de 2020

“Falou que conheceu até o Lula, acredita?”


Esse post poderia ter por título “vida de trabalhador”, mas achei melhor destacar um fragmento de um dos diálogos mais potentes do filme “Arábia”. Nesse filme, dirigido por Affonso Uchôa e João Dumans, o ator Aristides de Souza interpreta Cristiano, um trabalhador sazonal que registrou em um caderno a história de sua vida pouco antes de morrer. 

Aristides Souza realiza uma atuação impecável. Dá vida ao Cristiano, que trabalhou a vida inteira e não tinha nada, nem mesmo sobrenome. Foi trabalhador rural, operário fabril, faz tudo, peão de obra. Em síntese, trabalhou para viver e vivia apenas um dia de cada vez. Ele também passou a vida na estrada, de ponto a ponto a procura de trabalho. Dormiu na rua, em vagas oferecidas por pessoas que conhecera na estrada ou nas cidades em que parava; e terminou sua vida em uma vila operária.

O filme permite um mergulho profundo nas relações desenvolvidas por um homem que nada tinha, e encontrava pelo caminho outros homens e mulheres que também não tinham nada, além da roupa que vestiam e da parca comida que os alimentava. Ainda assim dividiam tudo. Como dividir o que não se tem? Parece um grande mistério, mas é apenas a existência das populações mais marginalizadas que está ali escancarada em cada tomada do filme. Alguns personagens tiveram passagens pela polícia, inclusive Cristiano, mas eram todos honestos e prezavam por uma vida modestíssima, mantida pelo suor de seus corpos. Ninguém queria voltar para a cadeia, ainda que precisassem esfolar seus corpos vivos para que isso não acontecesse.

No meio de toda essa miséria, surgem interações afetivas, amorosas, amizades intensas, carinho, cuidado, dúvidas sobre o que afinal é a vida e uma motivação intensa para continuar vivendo. Cristiano não desiste nunca, mesmo quando o mundo inteiro parece jogar contra ele. Ele segue em frente sem dinheiro, sem casa, sem família, sem nada além da estrada.

No meio do filme ocorre o diálogo do qual retirei o fragmento que dá título ao post. Um grupo de trabalhadores rurais conversava sobre um ex-sindicalista que tinha enfrentado os fazendeiros por melhores condições de vida para os trabalhadores da colheita de tangerina. Dali, depois daquelas lutas, seguiu para São Paulo, e supostamente teria conhecido o Lula. Naquele momento, já idoso, o sindicalista tinha voltado para a sua terra natal e permanecido nela até morrer.

Não foi por acaso que escolhi esse fragmento. A referência ao Lula não foi acidental no filme e muito menos aqui nesse texto. Lula também é um sindicalista velho, que enfrentou muitas lutas e em todas elas tinha como foco os trabalhadores. Foi para os milhares de Cristianos presentes no Brasil que Lula viveu e vive. Os trabalhadores, esses homens e mulheres que desenvolvem suas existências em meio à miséria material, sempre estiveram no escopo das ações políticas de Luis Inácio Lula da Silva. Eles são muitos, também são brasileiros e quase ninguém lembra deles.

Você, leitor, lembra?

Vale a pena assistir ao filme para lembrar. Ele está disponível gratuitamente no site do Itaú Cultural. Basta seguir o link: https://www.itaucultural.org.br/arabia-mostra-brasil-cinema-agora. Prefiro não dar mais nenhum spoiler. Quem sabe aguço a curiosidade de quem estiver lendo. Em tempos de corona vírus, sugiro o filme também para todos aqueles que estão praguejando contra Deus e o Diabo porque têm o privilégio de ficar em casa. Cristiano jamais poderia ficar em casa porque ficar em casa significaria morrer de fome. Entre morrer de fome ou pelo COVID-19...

Além do roteiro primoroso, o filme também apresenta uma trilha sonora incrível, que começa com o “Blues Run The Game”, do Jackson C. Frank, passa por “raízes”, do Renato Teixeira, dentre muitos outros. Algumas músicas são interpretadas pelos personagens, em seus momentos de diversão.
Cristiano e seus companheiros de vida, de trabalho e de estrada também encontravam diversão. No meio do caos material eles cantavam, chegaram a fazer teatro e viviam juntos. Suas existências superavam a miséria e abriam espaço para questões existenciais que são de todos nós. A vida sempre dá um jeito.

sábado, 23 de maio de 2020

Amado Batista, a breguice e a confeitaria Santo Amaro


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Faz pouco tempo que assisti a um documentário sobre o Eduardo Coutinho, chamado Banquete Coutinho, de 2019. Tratava-se de uma homenagem ao cineasta, que o colocava do outro lado da filmadora. Ele falou sobre uma série de temas, citando seus próprios filmes para exemplificar o que dizia. Em um determinado momento, falou sobre a música e o poder de sedução que ela exerce nas pessoas. Deu a entender que a música seria mais forte do que o cinema na vida das pessoas e cantarolou uma estrofe.
Exatamente nesse momento eu tive um estalo de memória, que me transportou para algo que vivi faz uns 10 anos, na confeitaria Santo Amaro. Para quem não conhece, essa confeitaria funciona 24 horas, no bairro da Glória aqui no Rio de Janeiro.
Era uma sexta-feira. Parei lá por volta das 22h:30m. Eu tinha dado aula à noite, estava com fome e decidi comprar cervejas e uns petiscos para beber e comer em casa. Fui ao caixa, paguei e me dirigi ao balcão da lanchonete, onde a atendente entrega itens como os que eu havia comprado. Parei em pé no balcão e de repente o mundo inteiro parou. Fiquei com o braço estendido, segurando a nota do caixa enquanto a menina não se mexia. Olhei para o lado e o taxista que estava lanchando tinha congelado o sanduiche entre o prato e a boca, como numa cena de cinema. Olhei ao redor e todos estavam assim, congelados e com os olhos vidrados na televisão.
Todos os olhares foram deslocados para a tela quando um violoncelo deu o tom para ele, Amado Batista, soltar a voz em um de seus clássicos “reclamando sua ausência”, em versão acústica. Em alguns segundos, irrompe Amado com a primeira estrofe: “eu sei, foi o amor que fez você me amar. Eu sei, que esse amor, vai fazer você voltar”. Foi um fenômeno. A padaria inteira parou como se estivéssemos em um recurso cinematográfico de congelamento. As balconistas, os garçons, o taxista que comia seu sanduiche, a caixa, as pessoas que estavam na fila da caixa, o gerente. Todo mundo! Foi como um transe ritual, que durou até Amado reclamar da ausência da amada. Nesse momento, todos começaram a cantarolar, como se junto com ele também reclamassem pela ausência de suas e seus amados. “E agora, estou sozinho reclamando sua ausência..”.
Que força é essa, pensei! Que poder é esse que emana dessa letra e dessas notas? É claro que pensei nisso enquanto fazia coro com os outros cantarolantes na padaria. Pessoas de diversos tipos, trabalhadores de balcão, taxistas, moradores do bairro que estavam ali para comer e beber, todos juntos. A música terminou, recebi minhas cervejas e meus petiscos e fui embora com as estrofes ainda buzinando na minha cabeça.
Ao lembrar dessa cena urbana, concordei imediatamente com o Coutinho. A música tem esse poder de sedução e tendo a argumentar que a música popular é mais forte nesse sentido. São notas simples, com rimas pueris, sem grandes floreios literários; e sempre voltadas para as nossas emoções mais profundas.
Tristeza, solidão, saudades de um grande amor são capazes de criar conexões entre pessoas que não se conhecem e nunca se viram até aquele momento; todas elas mediadas pela música. Amado Batista é um especialista nesse assunto e junto com vários outros integra essa grande categoria englobante chamada de Brega. É muito brega, mas... sempre agrega. O velho Durkheim ajuda a explicar essa força coletiva que transforma todos nós em um em determinados momentos. Quem nunca curtiu uma breguice que atire a primeira pedra. Ou melhor: vá curtir. Tenho certeza que vai gostar. Se quiserem começar por “reclamando sua auência”, a letra está aqui:
Eu sei
Foi o amor que fez você me amar
Eu sei
Que esse amor vai fazer você voltar
Espero
Que a saudade te vá bater no coração
E quando
Ela bater vai saber que estou te amando
E agora estou sozinho reclamando sua ausência
Na esperança dos bons ventos te soprar
Lembrar de mim e saber que ainda existo
E agora estou sozinho reclamando sua ausência
Na esperança dos bons tempos te tocar
Lembrar de mim e saber que ainda existo.

E o vídeo com a versão acústica está aqui:


Boa breguice no final de semana!

domingo, 10 de maio de 2020

A mãe da minha mãe e os tomatinhos.


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Eu adoro tomate sweet grape. Esse tipo é especial porque me remete a memórias deliciosas da minha infância. Minha avó gostava de ter uma horta. Ela plantava couve, jiló, mandioca e tudo o mais que dava na telha. As verduras, principalmente, ficavam ali, fresquinhas, e ela colhia de acordo com a vontade de comê-las. Essa tradição é muito comum no interior das Minas Gerais. Boa parte do almoço fica ali no quintal da casa, e o cardápio é definido de acordo com o que está disponível no momento e com a vontade de comer.
Eu me lembro nitidamente do quintal da minha avó. Já se passaram 30 anos desde que o vi pela última vez. Foi um momento muito triste, em que ela era velada na sala de estar da casa. Pois é. Naquela época os mortos eram velados em casa e foi assim que me despedi da minha avó e de todo o mundo que ela construiu na sua casinha na beira do rio. Depois disso, voltei à casa somente uma vez, mas já não era a casa dela. Era um imóvel, já ocupado por outra família. Todo o universo simbólico que envolvia aquela propriedade foi-se junto com minha avó.
Mas o que tudo isso tem a ver com tomate? Certa vez, eu era bem pequenininho, provavelmente tinha uns 10 anos de idade; saí de Petrópolis com minha família e fomos visitar a minha avó. Assim que ela abriu o portão, eu pulei em cima dela e dei de cara com um pé de sweep grape repleto de tomatinhos já maduros. Foi um encantamento só. Ela percebeu e disse algo do tipo: “é para você, meu filho, estava te esperando pra gente colher”. Corri imediatamente para os tomates, colhi todos e comi boa parte deles ali mesmo, enquanto meus pais morriam de rir com aquela euforia de criança.
Essa história resume três das coisas mais importantes que minha avó ensinou para mim e para minha mãe: afeto, cuidado e paciência. Ela tinha calculado o tempo necessário para plantar e ver crescer os tomates de forma que eu chegasse na hora certa de colhê-los. As quantidades de afeto, cuidado e paciência presentes nessa atitude são incomensuráveis, e eu adoraria dizer a ela o quanto me marcou. Infelizmente ela se foi e não vai saber disso. Hoje eu posso apenas lembrar essa história. Talvez minha mãe se lembre, talvez não. Não sei. É uma história do amor que a mãe dela sentia por mim. Um amor tão incondicional quanto o que ela guarda por mim, por meus irmãos e meus sobrinhos.
É impossível para um filho entender o que é ser mãe. Só as mães sabem e acho bem bom que fique como um segredo delas. Mas aquele menino que colhia tomatinhos plantados e cuidados para ele tinha certeza de que ali ele era a pessoa mais importante do mundo. Foi isso que minha avó e minha mãe fizeram por mim, e nunca pediram absolutamente nada em troca.
Muito obrigado, minha mãe. Muito obrigado, minha avó. O amor que está em mim é o que veio de vocês. 

sexta-feira, 1 de maio de 2020

Pode a etnografia contribuir com a vida em tempos de cultura corona?



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Esse texto visa homenagear as trabalhadoras e os trabalhadores dos serviços essenciais. Muito obrigado a vocês que estão colocando as suas vidas em risco permanente em prol da saúde de todos nós.
        Eu ministro uma disciplina no Programa de Pós-Graduação em Educação da UFRJ chamada “estudos etnográficos em educação”. O curso envolve um debate sobre etnografia, teoria e produção de conhecimento antropológico; além de entrar nas minúcias dos bastidores do trabalho de campo de antropólogos brasileiros e estrangeiros, e discutir estudos etnográficos na educação.
Certa vez, em uma das aulas, um dos alunos perguntou: “mas professor, o que leva uma pessoa a querer fazer uma etnografia?” Ele justificou a questão afirmando que estava evidente que a etnografia provocava uma série de experimentações subjetivas no antropólogo(a), e também causava sofrimentos os mais diversos. Por isso, ele não entendia por quais motivos alguém poderia desejar isso.
A questão foi tão perspicaz que acabou tomando boa parte daquela aula. Eu comentei que a opção pela abordagem etnográfica envolve entregas subjetivas significativas. O(a) antropólogo(a) precisa estar disposto a relativizar até mesmo os aspectos mais básicos da sua própria cultura, para conviver com outras pessoas que, por vezes, pensam e sentem o mundo de formas totalmente diacrônicas às suas. Esse processo de convivência envolve uma série de crises existenciais que recheiam capítulos iniciais de etnografias e os diários de campo dos(as) etnógrafos(as). As etnografias só são possíveis exatamente porque os(as) etnógrafos(as) escolhem estar em campo e, consequentemente, escolhem viver também todas essas crises. Agora, o que tudo isso tem a ver com o coronavírus?
A eclosão da pandemia de coronavírus trouxe consequências significativas para as interações sociais. De uma hora para outra fomos obrigados – aqueles que são mais privilegiados – a permanecer em casa, trancados, em isolamento social. Esse novo lugar social ocupado por todos nós em medidas diferentes nos obrigou a reconfigurar nossas vidas cotidianas e nossos relacionamentos pessoais, profissionais, afetivos, sexuais. Em síntese, tivemos que mergulhar em um mundo desconhecido que até então simplesmente não existia. Esse mergulho, comparativamente, é semelhante ao mergulho do etnógrafo. Porém, há duas dessemelhanças. A primeira delas é que o antropólogo(a) escolhe mergulhar nas culturas dos outros enquanto todos nós fomos obrigados a mergulhar na cultura do corona-vírus. A outra é que o(a) antropólogo(a) mergulha em uma cultura sobre a qual tem algum nível de conhecimento e reconhece sua existência. Nós não conhecemos nada sobre a cultura do isolamento social e nem mesmo oferecemos a ela o estatuto de realidade.
Ainda que existam diferenças significativas, os exercícios etnográficos nos ajudam a sobreviver em tempos de cultura corona vírus. A principal ajuda refere-se à crise inicial proporcionada pelo mergulho em culturas desconhecidas. A subjetividade do(a) antropólogo(a) necessariamente fica tensionada e ele entra em uma crise existencial ao deparar-se com uma cultura tão diferente da sua. A temporalidade da crise será equivalente ao tempo que o antropólogo utilizará para aceitar novas formas de falar, andar, comer, vestir, conversar, entre outras. Quando aceita, a crise ganha outras tonalidades e só volta mais intensamente quando ele retorna para a própria cultura. Essa regra vale tanto para antropólogos(as) que pesquisam culturas exóticas quanto para aqueles que pesquisam culturas familiares. Ainda que realizado em culturas familiares, o mergulho etnográfico provoca crises existenciais causadas pela dinâmica familiar-exótico-exótico-familiar, descrita em detalhe nos textos de Roberto Da Matta e Gilberto Velho na segunda metade do século passado.
Nosso mergulho na cultura corona não foi escolhido por nós e consequentemente teremos crises existenciais provavelmente mais intensas. A experiência dos(as) etnógrafos(as) nos diz que o melhor caminho é aceitar esse mergulho e experimentar essas novas formas de cultura. Ninguém sabe ainda como será o mundo pós-corona vírus, mas o fato é que já estamos vivendo nele. Negá-lo, além de causar sofrimento subjetivo também contribui para o aumento da tragédia trazida por essa pandemia. Fiquemos em casa, construamos um novo mundo de nossas janelas físicas e virtuais e agradeçamos a todos aqueles que não podem ficar em suas casas e estão salvando nossas vidas enquanto colocam as deles em risco permanente.
Muito obrigado aos trabalhadores e trabalhadoras da saúde e de todos os serviços essenciais. Não há nada que pague o que vocês estão fazendo por nós.

Referências bibliográficas citadas:
DAMATTA, Roberto. “O ofício do etnólogo. Ou como ter anthropological Blues”. Rio de Janeiro: Boletim do Museu Nacional (27). 1978.
VELHO, Gilberto. Observando o Familiar. In: VELHO, Gilberto. Individualismo e Cultura: notas para uma antropologia da sociedade contemporânea. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999.


sábado, 18 de abril de 2020

“Onde que eu fui parar, aonde é esse aqui?”


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           A pergunta que dá título a esse post não é minha. É do Arnaldo Antunes. Ele é um dos músicos mais admiráveis do Brasil contemporâneo. Desde a época dos Titãs, eu sempre o via como uma das principais artérias do grupo. A outra era o Nando Reis. Depois, ambos seguiram brilhantes carreiras solo. São abordagens estéticas e musicais muito diferentes e, na minha leitura, bem complementares.
            A pergunta que dá titulo ao post abre a letra da música “longe”, composta pelo Arnaldo, junto com o Marcelo Jeneci da Silva e o Roberto Aguiar de Oliveira. É uma letra intimista, que apresenta um diálogo do eu lírico com seus sentimentos mais profundos. Perguntas como “Onde foi parar?” “Onde é esse lugar?” E outras que embalam um mergulho intenso na subjetividade individual em relação com o mundo externo.
            Hoje pela manhã, enquanto ouvia essa música, fiquei pensando no novo mundo que se descortina para todos nós. Não sabemos exatamente como viemos parar aqui. Mas temos certeza de que continuaremos por um bom tempo. A balada parece triste, solitária, melancólica. E realmente é, em alguns aspectos; mas também motiva um mergulho em nós mesmos, em nossas subjetividades e na solidão. Por que não? Toda a reflexividade que brotará desse mergulho vai nos ajudar a entender onde estamos, e para onde desejaremos ir depois que o pior passar.
Deixo vocês com a música, em uma versão do CD “ao vivo lá em casa”:



terça-feira, 7 de abril de 2020

A janela, o COVID-19 e um mundo novo para interpretar

Olá,
Esse post também está disponível em formato podcast. Caso prefiram, é só clicar no link.

https://soundcloud.com/rodrigo-rosistolato/200407_007a

Seguimos com o texto:

Existe uma regra elementar para quem deseja estudar e fazer antropologia. É preciso observar. Há dezenas de debates acadêmicos sobre o que é, afinal, a observação etnográfica. Parece um nome pomposo, misterioso, ao ponto de alguns pesquisadores fugirem dele. Mas não é tão complicado assim.

Qualquer antropólogo que se prese precisa estar atento ao comportamento dos outros. Em campo, ele tem que buscar entender o que os outros estão fazendo, e também o que estão pensando sobre o que fazem. Além disso, o mundo interno do antropólogo também precisa ser objeto de reflexão. Esse olhar antropológico demanda atenções diversas e foco em mosaico. É fundamental observar cada peça, mas olhar para o cenário inteiro também.

No início do treinamento antropológico alguns estudantes ficam assustados, e até felizes quando descobrem que não é necessário ser etnógrafo para ser antropólogo. Outros, como foi o meu caso, ficam encantados com o desafio de viver a vida com as pessoas que você está pesquisando e separar analiticamente cada momento dessa vivência para produzir uma abordagem propriamente antropológica.

Parece bem difícil, mas com o tempo vira um tipo de vício. No segundo ano da graduação eu passei a me perceber vivendo dentro e fora dos cenários de sociabilidade que eu frequentava. Ao mesmo tempo em que curtia uma noite na Lapa, por exemplo, passava boa parte do tempo olhando para o comportamento das pessoas, tentando compreender as ações ritualizadas, separando neófitos e veteranos naquele espaço, ensaiando níveis de previsibilidade nos contextos já familiares, buscando caminhos compreensivos para as ações das pessoas que ali estavam e, principalmente, conversando com todo mundo.


As conversas, isso é importante dizer, por vezes eram mais monólogos do que conversas em sentido estrito. O antropólogo precisa ouvir atentamente o que cada pessoa tem a dizer sobre o ambiente e sobre as atividades ali realizadas. Se as falas causam estranhamento, quanto melhor. Sem estranhamento não há antropologia. Essa é a primeira lição que qualquer aprendiz precisa aceitar.

Até ai é bê-a-bá antropológico, mas eis que surgem novas peças nesse tabuleiro: o COVID-19 e o isolamento social! Antropólogo isolado em casa é um caso sério. Vai fazer o que da vida? Vai observar o que? Vai compreender as ações de quem? Não tem jeito. A única solução possível é correr para a janela. Ou melhor, para as janelas.

Eu tenho frequentado quatro janelas simultaneamente. A da sala, a da TV, a do computador e a do celular, não necessariamente nessa ordem, e nem cada uma delas em separado. Gosto de todas, mas não no mesmo grau. Minha predileta é a da sala. Nela, observo a rua outrora movimentada e agora silenciosa, quase sepulcral à noite.

Durante o dia, o mundo ainda gira um pouquinho. As pessoas andam para lá e para cá, caminham com seus cães, compram alimentos, trabalham e se relacionam. É interessante observar que o COVID-19 passou a conviver com todos nós. Ninguém quer a presença dele, mas ele insiste em ficar. Uma das cenas que observei foi curiosa. Duas pessoas caminhavam com seus cães e cruzaram uma o caminho da outra. Não deram bola para esse encontro, até que seus cães se curtiram e quiseram se aproximar. Daí, tensão evidente. Eles não sabiam se deixavam os cães chegarem perto um do outro e trocar uns carinhos ou se seguravam suas coleiras impedindo qualquer contato. Por isso, ficaram ali, naquela dúvida. 

Quem era o quinto elemento da história? Ele! COVID-19. Dois seres humanos, dois animais e um vírus em pleno relacionamento em frente à minha janela. Incrível! O maior problema é que o vírus não falava nada, e não falará. Ele é onipresente, mas não se manifesta a não ser em silencio. Nesse caso específico, cada um seguiu com seu cão e seu COVID-19 a tiracolo, sem trocar nenhuma palavra.

Ué, mas eles estavam contaminados? Essa é a grande questão e a que menos importa. Tanto faz se estavam contaminados ou não. O COVID-19 estava ali, orientando as relações entre aquelas pessoas e aqueles animais; e o melhor que elas fizeram foi aceitar a presença dele e seguir em frente, sem toques, carinhos, abraços e trocas de telefones. Isso tudo elas deixaram para depois que o COVID-19 for embora. Uma das vantagens da antropologia é a certeza sobre certo grau de regularidade nos comportamentos humanos. Duas pessoas, no mesmo bairro, andando com seus cães em um determinado horário. É muito provável que se encontrem novamente, pós-COVID-19 e possam fazer tudo o que deixaram de fazer nesse encontro. Estou torcendo para isso, principalmente para os cães que se amaram.

Em síntese, o novo mundo está posto e temos que conviver com ele. Vale a pena abrir mão dos contatos físicos agora para que tenhamos muitos outros mais tarde. As janelas ajudam muito. Aquela invenção antiga que vínhamos usando cada vez menos também ajuda: o telefone (usado para falar, é claro!).

Para os antropólogos, o universo das interações está vivíssimo. É só reconfigurarmos o nosso olhar para o que há de novo, inclusive no mundo on line, e continuarmos observando as janelas em mosaico. Para quem quer aprender a observar, o momento também é ótimo!

Vamos aproveitar o novo mundo para aprender a viver nele!

terça-feira, 28 de janeiro de 2020

Sachsenhausen e Forte Breendonk: dois campos de concentração e uma experiência antropológica singular


Existem roteiros turísticos de todos os tipos, dos mais festivos aos mais reflexivos, passando por aqueles que eu classifico como necessários, fundamentais. Esses roteiros são os que permitem que olhemos para o passado e entendamos as tragédias que construímos. Assim, pelo menos em tese, não iremos reproduzi-las no presente e nem tampouco pensa-las como projeto de futuro.

Os campos de concentração transformados em museus fazem parte desses roteiros. Há vários espalhados pela Europa e estão lá para não deixar que a Europa – e o mundo – esqueçam da miséria que foi o nazismo, dos milhares de corpos que foram destruídos, de todas as subjetividades que foram destroçadas por um regime que transformou a destruição em massa de pessoas em objetivo fundamental da existência do próprio regime.

Eu visitei dois campos de concentração nos últimos anos. O primeiro deles foi o de Sachsenhausen, nos arredores de Berlim. O segundo, o Forte Breendonk, nos arredores da Antuérpia e de Bruxelas, na Bélgica. Ambos são museus e oferecem experiências diferentes, pautadas nas funções que aqueles espaços exerciam quando funcionavam como campos de concentração.

Sachsenhausen era um campo de “estágio” para nazistas. Não se tratava de um campo de extermínio, como Auschwitz, mas exterminou centenas e centenas de judeus e outros povos "indesejáveis". Os jovens soldados e os oficiais treinavam em Sachsenhausen para depois aplicarem as técnicas aprendidas ali nos outros campos em que fossem "trabalhar".

Seria impossível descrever em um único post todas as reflexões que a visita a esse campo proporcionou. Contarei apenas duas delas. A primeira foi a observação de um caminho de pedras totalmente irregulares. Ele está lá, e era usado para amaciar as botas dos soldados nazistas antes que fossem para a batalha. Como funcionava? Os prisioneiros eram obrigados a calcar as botas novas e caminhar durante todo o dia por essa estrada feita com pedras e outros materiais irregulares. Assim, as botas machucariam seus pés e não os dos soldados. Quando os soldados as utilizassem, já estariam amaciadas. Os prisioneiros estavam famintos, desnutridos, sem roupas adequadas para o inverno alemão, e passavam o dia caminhando, arrebentando seus pés nas botas novas para o gozo sádico de uma plateia de soldados. Esse é apenas um exemplo de algo que não tem outro nome além de atrocidade. Há vários outros, dezenas de outros exemplos.

No mesmo campo, em certo momento, ouço uma voz feminina dizendo “excuse-me”, quase ao pé do meu ouvido. Era uma mulher jovem, que deduzo ter por volta de 30 anos. O pedido de licença se dava porque eu estava atrapalhando a selfie dela. Eu estava parado, observando o cenário, e ela precisava da fotografia perfeita, sem minha presença. Ela queria que somente o seu rosto sorridente e o muro estivessem na foto. Mas que muro era esse? Sachsenhausen usou várias “técnicas” para matar judeus e outros povos que ali estavam, e uma delas era o fuzilamento. A jovem mulher queria a foto “perfeita”, sorrindo em uma fotografia com o muro de fuzilamento em que centenas de pessoas perderam a vida.

O Forte Breendonk era um campo de concentração e deportação. Era usado pelos nazistas para efetuar registros, triagens e deportar prisioneiros de todos os tipos. Isso não significa que não havia mortes, torturas e toda a miséria presente no nazismo. Pelo contrário. Também nele o gozo sádico quase não tinha limites. Limitarei meu relato a dois episódios ocorridos no mesmo espaço: a sala de tortura.

A sala de tortura era utilizada para a obtenção de informações que interessassem ao avanço do Reich. Os instrumentos estão lá, preservados, e há no áudio-guia uma descrição detalhada dos tipos de tortura ali realizados. Dentre esses horrores, chamou-me atenção a racionalidade presente naquele cenário, materializada em uma canaleta que percorria todo o espaço. A lógica era a seguinte: como os prisioneiros seriam torturados e sangrariam, era importante ter uma canaleta que concentrasse o sangue e o conduzisse para o ralo, mantendo a “higiene” do espaço.

A rotinização da morte promovida pelos nazistas já foi descrita por vários autores, dentre os principais está a Hannah Arendt. Ler seus textos é doloroso. Ver, dói mais ainda. É impossível não indagar sobre onde foi parar a humanidade daquelas pessoas.

Nesse mesmo espaço, a sala de tortura, um professor conduzia seus alunos. Iniciou uma aula sobre a sala, as torturas... No meio da aula, pegou a corda de um dos instrumentos de tortura, puxou e fez uma brincadeira. Algo do tipo, “Soyez de bons élèves, sinon...” Mais da metade da turma riu. Alguns poucos, duas meninas principalmente, manifestaram a sua indignação saindo da sala. O professor também riu da sua própria piada infame.

Vejam que tive uma experiência singular em dois campos de concentração bem diferentes. Em ambos, ao mesmo tempo em que seres humanos sentiam as dores proporcionadas pela presença em um lugar desumano como aquele, outros seres humanos desejavam fazer a selfie perfeita e piadinhas com seus alunos. Daí, juntando as duas, fiquei pensando que nesses casos é preciso escolher um lado. De qual lado você está? Quer a selfie e a piadinha? Ou prefere a vivência museológica desse horror para que a tua existência contribua para que ele nunca mais aconteça?

Eu escolhi o meu lado. Quero que minha existência contribua para que esse horror nunca mais aconteça. É por isso que estou escrevendo esse post e vou falar sobre essa experiência em todos os lugares que puder. E também não vou votar em quem defenda torturadores e fale bem de mazelas humanas.

Por outro lado, tem gente por ai que está reproduzindo cenários nazistas, vestindo-se quase como nazistas, ouvindo as músicas que eram as preferidas dos nazistas, falando como os nazistas. Esses seres humanos, se estivessem comigo em Sachsenhausen ou no Forte Breendonk, provavelmente fariam a selfie e ririam da piadinha infame do professor. E você, faria o quê?