A
transição da segunda para a terceira-série do primário era um momento
importante para as crianças da minha geração. Atualmente essa terminologia não existe mais. Optei por mantê-la pelo fato de o texto tratar de um tempo histórico específico. Nós nos sentíamos grandes e
iríamos para uma série que era “muito mais difícil do que as anteriores. As mães
ficavam nervosas com isso e havia muita ansiedade para saber em qual turno e
qual turma cada criança iria estudar.
Na
minha escola, havia um “problema extra”. Todas as mães ficavam preocupadas com
a possibilidade de os filhos irem para a turma da Dona Lilica. Dona Lilica é um
nome fictício que estou usando aqui para contar essa história. Tratava-se de
uma professora que tinha fama de má. Dizia-se que ela era formada em matemática
e não admitia que nenhuma criança fosse aprovada sem que tivesse aprendido tudo
o que ela tinha a ensinar. Eu realmente não sei se ela era formada em matemática.
Era incomum na época ter professoras com uma formação diferente do normal e/ou
da pedagogia, mas no imaginário da escola, sim, ela era a matemática.
Eis
que quando fui enturmado lá estava eu na turma da Dona Lilica. Minha mãe ficou
nervosa, conversou comigo. Minha tia, mãe de uma das minhas primas que estudava
na mesma escola também ficou assustada e conversou com a minha mãe e comigo.
Caramba! Agora não tinha jeito. Eu seria um aluno da Dona Lilica.
Fiquei
apavorado! Além de ter que cursar a terceira-serie, ainda seria aluno da dona
Lilica. Lembro-me de que as férias passaram e lá fui eu com meu uniforme novo,
sapato vulcabraz 757 engrachadinho, cabelo cortado a contragosto em direção à
turma.
Logo
no primeiro dia cometi um erro crasso. Antes de qualquer coisa Dona Lilica
perguntou quem ali era repetente. Eu não sabia o que era ser repetente. Levantem
a mãos aqueles que não são repetentes, disse Dona Lilica. Fiquei lá com a mão
abaixada.
Bom,
vocês que são repetentes, saibam que não vão passar de ano só porque são
repetentes. Eu não quero saber. Aqui, ou aprende ou não aprende, vociferava
Dona Lilica no auge de sua cátedra. Daí perguntei para o colega ao lado, que
era repetente, o que era isso, afinal. Ele me explicou e eu levantei a mão para
desfazer o erro. A resposta de Dona Lilica foi a seguinte: você está bem, heim,
grandão. Eu tinha, naquela época, quase a altura de Dona Lilica. Não sabe nem
mesmo se é ou não repetente. Grande, grande e bobo desse jeito.
Depois
de tamanha acolhida, começamos com a aula do dia, que era exatamente de
matemática. Logo no primeiro dia! Eu já estava nervoso e fiquei mais ainda
quando ouvi: você, grandão, explique aí como se monta uma divisão com três
algarismos. Você fala e eu escrevo. Gaguejei solenemente por alguns segundos e
Dona Lilica finalizou: era o que eu esperava mesmo. Pode até não ser repetente,
mas não sabe nada. Na verdade, ninguém sabia. Ninguém tinha aprendido ainda,
mas a turma permaneceu em silêncio como se dominasse plenamente a operação.
Mesmo assim, lá foi Dona Lilica retomar o conceito de divisão para depois iniciar
a discussão sobre divisão com 3 algarismos.
Meu
maior problema com Dona Lilica, no entanto, não foi a matemática. A questão
toda era minha mão. Eu tinha uma mão ruim na perspectiva dela. Uma das minhas
mãos era ruim porque a outra era boa, a “mãozinha boa”. Certa vez ela me chamou
para receber uma das atividades que ela tinha corrigido. Quando cheguei em sua
mesa, estendi a mão esquerda e ela me disse: “essa não, menino. Pegue com a
mãozinha boa”. Realmente não entendi do que se tratava, mas a “mãozinha boa” só
podia ser a direita porque eu só tinha duas. Estiquei a mão direita e ela me
entregou a tarefa.
Eu
não sabia bem o que estaca acontecendo. Anos mais tarde, descobri que eu tinha
uma tendência a ser ambidestro. Eu usava as duas mãos indiscrimidadamente,
inclusive para pintar, escrever, etc, e isso era inconcebível para Dona Lilica.
Ela logo entendeu que minha letra era horrível por conta de eu usar às vezes a “mão
ruim”. Logo, eu tinha que aprender a usar somente a “mãozinha boa”. Ela chamou
minha mãe para conversar e disse: a letra desse menino é uma porcaria. Ninguém entende
nada. Compre um caderno de caligrafia para ele e eu vou passar exercícios de
caligrafia todos os dias e ele só pode fazer com a “mãozinha boa”. Nem minha
mãe entendeu aquilo até que Dona Lilica puxou minha “mãozinha boa” e disse: “essa
aqui é a mãozinha boa. Só pode escrever com essa”
Eu
fiquei muito encucado com aquilo. Por que, afinal, a minha mão esquerda era tão
ruim? Ela nunca tinha feito nada contra a Dona Lilica. E mesmo assim era
permanentemente torturada! “coloca essa mão ruim para trás, menino. Aqui, só
com a mãozinha boa”.
E
lá fomos nós, um longo ano em que a pobre coitada da minha mão esquerda fora
oprimida na sala de aula da Dona Lilica. No final das contas, a minha letra
continuou horrorosa, é assim até hoje. Eu passei de ano mesmo assim, e o que
aconteceu é que minha mão esquerda ficou de escanteio. Acabei destro para a
maioria das tarefas.
É
curioso porque muitos anos depois eu tive contato com a obra do Robert Hertz, que
escreveu um texto com o sugestivo título: “a preeminência da mão direita: um
ensaio sobre a polaridade religiosa”. Ele foi um sociólogo francês que morreu
em serviço na primeira guerra mundial e teve, por isso, sua carreira
interrompida. Ele nos deixou esse belíssimo texto no qual ele explica toda a
cosmologia relacionada às oposições entre as mãos direita e esquerda. No ensaio,
ele critica severamente quaisquer explicações meramente biológicas para o uso
majoritário da mão direita e descreve todo o universo sociocultural
representado por essa oposição entre as mãos. Quando o li, ainda na graduação,
lembrei-me de Dona Lilica.
Hoje,
na pandemia, decidi ver se eu ainda conseguiria escrever e pintar com a mão
esquerda. Faço diversas coisas com ela, mas não essas duas. Conversei muito com
minha mão para livrá-la do trauma de ter sido estigmatizada como uma mão ruim.
Ela já elaborou tudo e está até conseguindo escrever algumas coisinhas, mas com
muita dificuldade. Infelizmente, a crença de Dona Lilica na existência de uma “mãozinha
boa” em posição superior à “mãozinha ruim” contribuiu para que eu abandonasse
todas as possibilidades trazidas pela ambidestria. Acredito que eu teria
acessado outros processos cognitivos caso tivesse investido nas possibilidades
da minha “mãozinha ruim” ao invés de oprimi-la e estigmatizá-la.
Enfim,
não culpo ninguém. Nem mesmo Dona Lilica. Meu irmão caçula mais tarde conviveu
com a Dona Lilica também. Ele, que sempre foi bem menos obediente do que eu,
levava a Dona Lilica no bico o tempo todo. Ela o adorava e era outra mulher também.
Não sei o que aconteceu de bom na vida dela, mas algo aconteceu. Ela nem mesmo
era chamada de Dona Lilica. Tinha abandonado o nome em prol de um doce apelido,
que não poderei contar aqui para não denunciá-la.
E
por que não vou denunciá-la? Simplesmente porque não foi só culpa dela. Como o
próprio Hertz explica, a polaridade esquerda versus direita quando se trata das
mãos não tem nada de natural. É social. Dona Lilica fora totalmente doutrinada
por esse universo social dividido e não conseguiu sair dele. Também parece-me
muito evidente que ela nunca lera o Hertz. Fica a dica!
Deixo
aqui um beijo para a senhora, Dona Lilica. A senhora deve estar bem velhinha.
Por isso, deixo também um afago na cabeça, mas feito com a “mãozinha ruim”.
Espero que a senhora goste!