Eu
nasci bem antes da popularização da internet e dos videogames. Rede social
virtual era algo que só existia na cabeça dos mais visionários. Por isso, a
vida das crianças acontecia nas ruas onde grupos de meninos e meninas brincavam
e inventavam sua própria infância. Futebol da esquina, escaladas nas montanhas
serranas, expedições às cachoeiras, excursões de bicicleta animavam nossas
vidas fora da escola. Havia também dois outros tipos de interação que nos
animavam frequentemente: a implicância (hoje chamada de zoação) e as brigas
(simbólicas e físicas). Grupos de meninos eram organizados como pequenas “gangs”
que disputavam o território do futebol e qualquer outro espaço que estivesse
disponível.
Essas
implicâncias e brigas faziam parte de nossa progressiva construção ética e
moral. Eram ritualísticas e todos nós sabíamos como iriam começar e como iriam
terminar. Quando iniciávamos uma brincadeira, já prevíamos quem sofreria com as
implicâncias, quem defenderia o vitimado, o que seria dito, os acordos de paz
que seriam firmados e o final daquela brincadeira. No final das contas, íamos
embora satisfeitos e com os laços invisíveis de solidariedade reafirmados,
tanto aqueles que eram pautados no afeto quanto aqueles pautados no conflito.
Por
mais conflituosos que fossem esses encontros, havia regras éticas
inquebrantáveis. Dentre muitas outras, não era permitido xingar a mãe de
qualquer oponente, nem dizer que iria comer a irmã de alguém. Também não era
permitido desafiar alguém que fosse visivelmente mais fraco e jamais se deveria comemorar a desgraça de
qualquer oponente, mesmo que ele fosse um inimigo histórico.
Essas
regras éticas eram tão bem estabelecidas que qualquer um que as quebrasse seria
imediatamente constrangido por todos os meninos, aqueles que pertenciam ao seu
grupo e seus oponentes. Havia diversas punições. A pior delas era ser mandado
para casa e impedido de falar com qualquer menino da rua por um período que
poderia variar entre um dia até uma semana; uma semana para casos mais graves
como dizer que teria comido a irmã de alguém.
Bem
mais tarde, descobri que esses valores eram muito próximos daqueles que
vigoravam nas sociedades mediterrâneas. Quando li o J. G. Peristiany[1]
entendi que honra e vergonha são (ou eram) princípios estruturantes das
interações sociais no contexto mediterrâneo. Guardadas as devidas
especificidades locais, eu e meu grupo de meninos éramos organizados por esses
princípios. Não sabíamos bem disso, mas queríamos ser honrados, o que
significava defender a própria dignidade, a honra de nossas mães e de nossas
irmãs. Minha irmã me dava um trabalho
danado porque era (e continua) linda, o que a transformava em munição para meus
“inimigos”.
É
claro que esses valores guardam muito do machismo tradicional. Discuti-lo
demandaria um espaço maior do que o que pretendo usar aqui (fica para outro
post). Meu foco hoje está na impossibilidade de comemorar a desgraça de
qualquer inimigo. Esse tipo de comemoração estava entre as piores desonras. Lembro-me
de uma situação em que um dos meninos caiu em uma cachoeira no exato momento em
que pulava e caçoava freneticamente de outro. O motivo da zoação era o fato de
o menino ter corrido de uma menina que, supostamente, queria namorar com ele. Ao
pular de uma pedra à outra, o “zoador” caiu. De início, todos nós rimos
largamente até que percebemos que não era um tombo bobo qualquer. Ele estava
realmente machucado. Nesse momento, o menino “zoado” foi o primeiro a pular nas
pedras para socorrer o seu “inimigo”. Nós o carregamos até sua casa em silêncio,
em uma trégua silenciosa. Era a honra do grupo que nos movimentava e seria uma
vergonha completa não socorrê-lo ou caçoar de sua desgraça.
Contei
toda essa história para dizer que morro de vergonha das pessoas que estão
comemorando a morte da ex-primeira dama Marisa Letícia. Não estou interessado
em saber quem gosta ou desgosta do Lula e/ou de sua família. Também não estou
interessado em discutir pela enésima vez quem são os responsáveis pela situação
do Brasil contemporâneo. Nada disso tem qualquer relação com o riso e o deboche
perante a morte. Marisa Letícia morreu e Lula tem todo o direito de sofrer
porque perdeu a mulher que o acompanhou durante a maior parte de sua vida. Os filhos
também têm o direito de sofrer porque perderam a mãe, os amigos e
correligionários, idem. Os inimigos deles deveriam usar o princípio da honra e
realizar uma trégua silenciosa nesse momento, para que não fiquem envergonhados
com o que a história contará para seus próprios filhos.
[1] Peristiany, Honour and shame. The values of Mediterranean
society. University of Chicago Press, 1966.