Lá na cidadezinha de minha
avó dizia-se que “homem se prende pela boca”. Era um tipo de conselho dado às
moças casadouras que deveriam aprender a cozinhar para aqueles que seriam “seus”
homens. Nós, os homens, brincávamos com o conselho dizendo que as mulheres
deveriam nos prender com a boca. O duplo sentido da afirmação causava rubores
os mais diversos, principalmente nas moças que, por acaso, ouviam as conversas
masculinas.
Quando cheguei ao Rio
de Janeiro percebi rapidamente que minhas histórias com duplo sentido não
deixavam ninguém ruborizado. Certa vez brinquei com uma de minhas colegas de
graduação dizendo que ela deveria seguir a lógica das meninas de Minas e me prender
com a boca. A resposta veio, como pergunta, de imediato: “qual das duas?” Quem acabou
ficando sem graça fui eu.
A situação descrita é “boa
para pensar” a relação entre sexo e comida. No Brasil, diz-se que quando alguém
vai fazer sexo e assume postura ativa, está “comendo” alguém. A metáfora é
curiosa e brilhantemente explorada em “Estômago”. O filme é um dos resultados
de um acordo de co-produção bilateral Brasil-Itália. Foi produzido no Brasil e
finalizado na Itália.
Não é a primeira vez
que elogio um filme protagonizado por João Miguel. Em “Estômago”, ele dá vida à
Raimundo Nonato, migrante sertanejo que descobre seu talento culinário quando
vai trabalhar de graça em um boteco que servia pastéis e coxinhas. Com seu sucesso,
é descoberto pelo dono de um restaurante italiano, que o leva para aprender os
mistérios da alta gastronomia.
Boa parte do filme se
passa em uma penitenciária, onde Raimundo Nonato cumpre pena por ter encerrado
sua carreira com um crime cometido dentro do restaurante onde trabalhava.
Raimundo, apelidado Alecrim,
transforma sua cela em uma cozinha onde conquista poder e admiração dos outros
presos ao transformar as refeições diárias em pratos requintados.
As melhores cenas ficam
por conta de João Miguel e Fabiula Nascimento. Ela interpreta uma prostituta
glutona, pela qual Raimundo Nonato se apaixona e a conquista oferecendo pratos
cada vez mais requintados. Ela descobre Raimundo quando come uma das coxinhas
feitas por ele e geme longamente com o prazer proporcionado pelo petisco.
Depois disso, o casal
protagoniza uma sequência de cenas onde os prazeres do sexo e da comida se misturam.
Na melhor delas, a prostituta está comendo um prato de massa ao suco, enquanto
é comida por Raimundo Nonato. Suas feições expressam um prazer incomensurável,
mas é impossível dizer qual das sensações está mais gostosa.
“Estômago” é fantástico
para pensar as trajetórias de dois sujeitos sociais que se encontram no
universo urbano e se relacionam – dando de comer um ao outro. A efemeridade
desta relação associada à individualidade dos personagens permite refletir sobre
vários pontos presentes no debate antropológico sobre o mundo urbano. O fim da
relação do casal é um dos pontos mais quentes do filme, mas deste eu não vou
falar. Fica a indicação e o suspense sobre o final...
O mais curioso disso
tudo é que mesmo acompanhando os lançamentos nacionais bem de perto, nunca ouvi
falar em “Estômago” até o momento em que foi anunciado no Canal Brasil. O filme
ganhou dezenas de prêmios, nacionais e internacionais, mas pelo visto ficou
pouquíssimo tempo nas telas. Por que será que o cinema brasileiro, exceção
feita às comédias, atrai pouco público? É uma questão de matar.