Ontem
pela manhã fui surpreendido com a cobertura da imprensa sobre mais uma tragédia
na cidade serrana de Petrópolis-RJ. Depois de ler as matérias jornalísticas,
liguei a televisão e não se falava de outra coisa. Naquele momento, o prefeito
da cidade apresentava a grande culpada pelo desastre: a chuva ou as chuvas de
março.
Sou
Petropolitano e vivi intensamente todas as tragédias que ocorreram na cidade desde
a década de 1970, quando nasci. Já vi de tudo: casas caindo, amigos morrendo
sufocados por barreias ou afogados nas enchentes, pessoas desesperadas por
perderem seus entes mais queridos. Na pior das enchentes, a de 1988, pelo menos
era a pior até a dessa semana, boa parte de minha família ficou desabrigada.
Alguns perderam suas casas e outros corriam o risco de perdê-las. Aquela enchente
foi democrática. Atingiu todos com a mesma intensidade, dos bairros mais ricos
aos bairros mais pobres. A tragédia e a miséria que a procedeu uniu pessoas
antes separadas por fronteiras de classe e “raça”, marcadamente presentes no
contexto petropolitano da década de 1980. É claro que após o fim da tragédia
tudo voltou ao “normal”.
Bom,
meu objetivo aqui não é falar dos modelos de estratificação social presentes em
Petrópolis. O que quero é externar minha surpresa por saber que a maior culpada
pela tragédia (a atual e as anteriores) é a chuva. Incrível saber disso porque
nunca imaginei que uma cidade montanhosa, onde as montanhas têm uma “capa de
terra” de mais ou menos um metro; uma cidade cortada por rios os mais diversos
e que recebe chuvas o ano inteiro poderia ser vitimada pela chuva. Ninguém
imaginaria isso, não é mesmo!
Pois
bem. Vivo no Rio de Janeiro faz 15 anos, mas mantenho estreitas relações com a
cidade de Petrópolis e fico cada vez mais surpreso com o crescimento do município.
Algumas áreas que eram totalmente
descampadas em minha infância hoje são ocupadas por dezenas, centenas de casas.
Há alguns espaços em que todos, inclusive os moradores, sabem que haverá
desgraças durante as chuvas. Mesmo assim, os moradores não saem de lá e os
poderes públicos fecham os olhos até que a tragédia anunciada aconteça. Este
fenômeno ocorre em vários espaços da cidade, inclusive nas áreas de proteção
ambiental, que são, em tese, protegidas.
O
discurso político partidário enfatiza que as pessoas têm direito à moradia e
isso é óbvio e ululante. Porém, há outro direito inalienável que deve ser
respeitado antes mesmo do direito à moradia. Trata-se do direito à vida. Quando
uma família finca uma casa em um lugar que tem 90% de chance de sofrer
inundações e ou deslizamentos, os poderes públicos tem que agir e retirar esta
família de lá para que a família tenha seu direito à vida respeitado. Infelizmente
não é o que vemos. Dezenas de famílias continuam vivendo em locais de alto
risco, o lixo continua lá, o esgoto sanitário é despejado livremente na
natureza, etc.
Uma
das melhores iniciativas das décadas de 1970/1980 para a resolução deste tipo
de problema foi a criação de conjuntos habitacionais construídos pelo sistema
BNH (Banco Nacional de Habitação). Há muitos críticos ao sistema,
principalmente ao fato dele ter priorizado moradias verticais em detrimento da
tradição petropolitana que prioriza moradias horizontais. O fato, em minha
visão, é o seguinte: o sistema BNH permitiu que famílias populares tivessem
acesso à casa própria em locais seguros. Todos foram construídos por empresas
que realizaram estudos sobre a topografia de Petrópolis e propuseram
alternativas preventivas para as chuvas e os deslizamentos. Resultado: as pessoas
vivem bem e seguras. Ambos os direitos estão garantidos: à vida e à moradia.
Depois
de ouvir a fala do prefeito e descobrir que a culpada foi a chuva eu fiquei
pensando. Será que a prefeitura da cidade recolheu e processou o lixo como
deveria ter feito? Realizou obras de contenção de encostas onde era necessário?
Combateu o assoreamento dos rios como deveria ter combatido? Retirou e acolheu
famílias que por conta de questões diversas estão vivendo em áreas de altíssimo
risco? Fiscalizou a ocupação desenfreada de áreas de proteção ambiental? Modernizou
o sistema de esgotamento sanitário?
Eu,
particularmente, sou contra o discurso que culpa a natureza pelas tragédias. É claro
que as mesmas águas de março que inspiraram Tom Jobim são capazes de causar
muita destruição. Porém, se os homens fizessem o dever de casa, seria bem mais
fácil resistir e conviver com a força das águas. Eu realmente gostaria de ver
um trabalho preventivo ocorrendo de fato porque não vejo a hora de parar de
contabilizar os amigos perdidos e as vidas destruídas. Eu poderia apresentar
uma lista, mas seria triste demais. Afinal, qualquer petropolitano tem também
sua listinha e sabe bem como é terrível não poder apagá-la.