Meu pai morreu na terça-feira, dia
04 de outubro de 2022, à noite, por conta de uma parada cardiorrespiratória. Tinha
81 anos. Desde 2019 ele vinha lutando contra um conjunto de doenças severas: Parkinson,
diabetes, doença renal crônica, pneumonias sucessivas. Foi uma batalha gloriosa
e muito severa. Estive ao lado dele durante todo esse período e aprendi muito
sobre a existência humana em seus princípios mais elementares.
Ele foi um humano
típico. Errou, acertou, brigou, reconciliou, praguejou contra o que considerava
injusto, deu e recebeu carinho, agregou pessoas, separou pessoas. Nunca teve
qualquer autocensura sobre o que pensava, de forma que simplesmente abria a
boca e deixava o que estava na cabeça sair, por vezes inundando os ambientes
com a acidez do que vociferava com a enorme voz que possuía.
Nos últimos anos estivemos muito
juntos e nos últimos meses fizemos algumas viagens – de Petrópolis ao Rio de
Janeiro – para ele realizar exames e consultas médicas. Essa convivência me
permitiu sentir o quanto aquele homem amava viver; sabia que estava em seus
momentos finais e os aproveitava como se fossem os últimos.
Em uma dessas viagens, paramos
para fazer um lanche. Estávamos eu, ele e meu irmão caçula. Comprei uns
croquetes e água para comermos no carro mesmo. Ele já não andava e era muito difícil
retirá-lo do carro, colocá-lo à mesa. Tudo era muito difícil e cansativo para
ele. Por isso, ficamos ali no carro sentados, ouvindo chorinho e comendo os
croquetes. A deglutição dele estava muito prejudicada. Demorava para morder, mastigar,
engolir e se engasgava toda hora. Foi assim com o primeiro croquete. Engasgou tanto
que eu e meu irmão ficamos preocupados e decidimos não dar o segundo. Não ali.
Daríamos quando ele chegasse à clínica na qual estava internado. Ficou puto, me
olhou com cara feia e disse “me dá o segundo bolinho”. Não dei. Disse que daria
quando chegássemos à clínica. Aceitou sem concordar e seguimos. Durante o
restante da viagem estendeu a mão e me pediu o croquete sei lá quantas vezes, e
quando eu dizia que ele comeria na clínica, ele afirmava: “não vai ser a mesma
coisa”.
Já em Petrópolis, decidi parar o
carro e dar o croquete antes de chegarmos à clínica. Feliz da vida, começou a
comer de novo, engasgou-se de novo. Ficou ali, literalmente lutando com aquele
croquetinho. Perguntei se estava bom e ele disse: “tá, mas quentinho lá na loja
estava muito melhor”. Depois disso chegou à clínica todo feliz, contando para os
enfermeiros que tinha feito um lance muito gostoso, mesmo assim queria almoçar.
Noutra viagem, assim que entrou
no carro fez o ritual de sempre. Apontou para o rádio do carro pedindo a
musiquinha, o chorinho que ele gostava e não entendia bem de onde saia. Eu
usava o celular, com uma playlist de chorinhos clássicos e aquilo tudo era um
grande mistério para alguém que nasceu e viveu a maior parte da vida sem
internet. Musiquinha ligada, vem a pergunta: “vai ter bolinho?”. Ele estava
descendo para fazer uma consulta séria, que definiria o tratamento dele a
partir dali e só tinha uma preocupação: se teria bolinho no retorno. Depois, um
dos enfermeiros que cuidava dele me contou que havia outra: a roupa. Ele
reclamava muito enquanto estavam escolhendo as roupas dele porque queria vir ao
Rio bem bonito e sem roupas repetidas. Bruno, o enfermeiro, achava graça e o
tratava como se também fosse filho dele. Bruno é um dos melhores profissionais
que conheci nestes tempos. Todos que trabalham na clínica são excelentes, mas Bruno
é excepcional. Meu pai o adorava e ele ao meu pai. Como diz a minha mãe, foi um
encontro de almas.
No meio do caminho de volta, ele
me perguntou algumas vezes: “tá chegando o bolinho”. Eu respondia que sim, mas o
tempo para ele era urgente e como uma criança pequena só sossegava quando
chegava à lanchonete. Comemos bolinhos de novo, engasgou-se novamente; ficamos
ali parados: eu, ele e meu irmão, por quase uma hora enquanto ele comia os seus
dois croquetes.
Neste dia ele percebeu que eu e
meu irmão também comemos um éclair de chocolate. Depois que finalmente terminou
os bolinhos eu perguntei: vamos? E ele: “não! E meu chocolate?” Não dei o
chocolate. Era demais para quem iria subir serpenteando a serra de Petrópolis.
Não dava para assumir o risco de um engasgo, vômito... tudo era muito perigoso.
Prometi o chocolate para a outra viagem, mas infelizmente não deu tempo. Ele
chegou contente na clínica, feliz com a viagem, o lanche, pronto para almoçar e
ir para a cama.
Toda essa história foi contada
para sublinhar o que ele me ensinou. Cada segundo da vida vale a pena. Um homem
doente, impossibilitado de andar, que precisava de quase uma hora para comer
dois croquetes, com dores permanentes em várias partes do corpo, acometido por
um cansaço enorme quando fazia qualquer atividade e, ao mesmo tempo, absolutamente
realizado por fazer um lanche com os filhos e poder aguardar o próximo, com chocolate.
A vida dele valeu a pena. Agora morreu, mas vive em mim, no meu irmão caçula,
na minha irmã, na minha mãe e em todas as pessoas com as quais ele conviveu. E
todos nós somos o que somos também porque ele viveu.
Aproveitem cada segundo com seus
pais. Encontrem toda a vida que está presente em um lanchinho frugal e façam
isso o quanto antes. Nunca sabemos quando vai acabar. Esses momentos permitem
que nós compartilhemos as nossas existências em toda amplitude do que significa
existir. Tenho certeza de que o “seu João” viveu e morreu sabendo disso. Muito obrigado, pai.