Assisti Bacurau e não
gostei. Foi estranho sentir isso porque 10 em cada 10 pessoas que eu conheço e
respeito também assistiram e fizeram recomendações apaixonadas e explícitas. Só houve uma exceção: meu querido amigo Rodrigo Monteiro, que fez críticas significativas e muito convergentes com as minhas. Daí,
fiquei pensando no que teria causado em mim tamanho estranhamento. Há 4 pontos
de desencanto de minha parte. Alguns dúbios, inclusive, mas em conjunto
explicam a minha decepção.
(i)
Logo nos primeiros minutos me senti em
um filme do Glauber Rocha. Gostei da lembrança e considerei uma homenagem
àquele que fez do Nordeste um tremendo objeto de reflexão artística e política
sobre o Brasil. Embora na contramão em termos estéticos da linha argumentativa
perseguida pelo Kleber Mendonça Filho em filmes anteriores, parecia
interessante para que pensássemos em quantos nordestes existem no nordeste
brasileiro. As tomadas longas do sertão, a quase ausência de diálogos, os
silêncios prolongados, os sons do motor do caminhão irrompendo no silêncio da
paisagem, tudo muito bonito. Depois, a chegada em Bacurau e as imagens dos
citadinos, seus conflitos e disputas; e as fragmentações causadas pela morte de
uma das lideranças locais. Tudo sensacional, um convite às minhas memórias
cinematográficas, assim como às minhas experiências pessoais no nordeste.
(ii)
A chegada do prefeito em uma cidade que
se organiza para se esconder do prefeito. Foi meu primeiro estranhamento. Imaginar
uma cidade do interior que foge do diálogo com o prefeito, não negocia, se
esconde e se organiza apenas para que todos saibam quando ele está chegando
causou-me um tremendo estranhamento. Toda a antropologia política e qualquer
experiência no nordeste evidenciam exatamente o contrário. Os nordestinos estão
muito acostumados com políticos pilantras e negociam o tempo todo. A população
age politicamente com clareza sobre as efetivas possibilidades de seus votos em
relação com as demandas individuais e locais. Além disso, foi o primeiro
momento em que senti um tom de negação do diálogo e das complexidades envolvidas
na política. Um tipo de negação por princípio, que isola os políticos e os
coloca como responsáveis individuais pelas mazelas do povo. As instituições e a
política institucional são negadas.
(iii)
Os vilões e a resposta de Bacurau. O filme
constrói uma mistura entre vilões do norte – os americanos assassinos – e vilões
do sul – brasileiros que se acham brancos e divertem-se com a carnificina. É curioso
porque a diversão dos vilões do sul dura pouco. São, também eles, vítimas do veneno
que começaram a oferecer. Depois disso, ciente do destino que a aguardava, a
cidade resiste convocando “Pacote” e “Lunga”. O primeiro, um assassino
profissional regenerado, que é convocado a “sujar as mãos” novamente, mas agora
pelo bem comum. O segundo, um bandido andrógeno, construído com uma estética
que mistura o estilo “gansta rap” com
a estética dos nossos conhecidos traficantes brasileiros. Tão exótico que um
dos personagens pergunta, assim que Lunga retorna à cidade: “que roupa é essa?”. Outra forma de
resistência é o recurso ao forte psicotrópico misterioso que ajuda a
transformar pacatos cidadãos em exímios assassinos.
(iv)
Tudo isso junto degringola em uma
resistência sem Estado, sem república, sem instituições políticas e sem
diálogo. Há uma ode àquilo que a história classificou como “banditismo
social”. A resposta aos invasores e ao prefeito pilantra é simples. Se tentarem
nos vender, controlar ou dominar, matamos vocês. Ou melhor: nossos bandidos
matarão vocês. É claro que no final o prefeito sobrevive e o líder do grupo americano
também, mas é uma sobrevivência discutível. O primeiro é abandonado à própria
sorte, seminu no sertão, e o segundo é enterrado vivo enquanto a população – e a
plateia da sala em que eu estava – regozijam-se com a cena.
Ainda
há outros pontos sobre o meu descontentamento com o filme, mas esses
quatro sintetizam meu desconforto.
Não sou favorável à negação da política, não
desejo assassinar e/ou enterrar meus inimigos ainda vivos, não legitimo a ideia
do bom bandido e não penso que a política – e os políticos – estão desacreditados
ao ponto de terem que ser negados por princípio. Em minha singela opinião, se o
Brasil virar Bacurau, estaremos todos definitivamente perdidos.