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Sou um antropólogo brasileiro especializado em temas educacionais. Meus trabalhos focalizam as relações existentes entre a educação escolar e outras esferas da vida social. Atualmente, desenvolvo pesquisas sobre estratégias familiares e projetos de escolarização nas camadas populares das cidades do Rio de Janeiro e Petrópolis, ambas no Brasil. A abordagem inclui reflexões sobre a educação básica e o ensino superior. O debate sobre a construção social das juventudes é privilegiado porque permite interpretações refinadas sobre as relações entre educação escolar e expectativas de futuro. Trabalho no Departamento de Fundamentos da Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro-UFRJ onde ensino antropologia e sociologia da educação, além de orientar estudantes interessados no debate entre ciências sociais e educação.

terça-feira, 19 de março de 2013

Chuva e tragédia na Serra: visão de um petropolitano.


Ontem pela manhã fui surpreendido com a cobertura da imprensa sobre mais uma tragédia na cidade serrana de Petrópolis-RJ. Depois de ler as matérias jornalísticas, liguei a televisão e não se falava de outra coisa. Naquele momento, o prefeito da cidade apresentava a grande culpada pelo desastre: a chuva ou as chuvas de março.

Sou Petropolitano e vivi intensamente todas as tragédias que ocorreram na cidade desde a década de 1970, quando nasci. Já vi de tudo: casas caindo, amigos morrendo sufocados por barreias ou afogados nas enchentes, pessoas desesperadas por perderem seus entes mais queridos. Na pior das enchentes, a de 1988, pelo menos era a pior até a dessa semana, boa parte de minha família ficou desabrigada. Alguns perderam suas casas e outros corriam o risco de perdê-las. Aquela enchente foi democrática. Atingiu todos com a mesma intensidade, dos bairros mais ricos aos bairros mais pobres. A tragédia e a miséria que a procedeu uniu pessoas antes separadas por fronteiras de classe e “raça”, marcadamente presentes no contexto petropolitano da década de 1980. É claro que após o fim da tragédia tudo voltou ao “normal”.

Bom, meu objetivo aqui não é falar dos modelos de estratificação social presentes em Petrópolis. O que quero é externar minha surpresa por saber que a maior culpada pela tragédia (a atual e as anteriores) é a chuva. Incrível saber disso porque nunca imaginei que uma cidade montanhosa, onde as montanhas têm uma “capa de terra” de mais ou menos um metro; uma cidade cortada por rios os mais diversos e que recebe chuvas o ano inteiro poderia ser vitimada pela chuva. Ninguém imaginaria isso, não é mesmo!

Pois bem. Vivo no Rio de Janeiro faz 15 anos, mas mantenho estreitas relações com a cidade de Petrópolis e fico cada vez mais surpreso com o crescimento do município.  Algumas áreas que eram totalmente descampadas em minha infância hoje são ocupadas por dezenas, centenas de casas. Há alguns espaços em que todos, inclusive os moradores, sabem que haverá desgraças durante as chuvas. Mesmo assim, os moradores não saem de lá e os poderes públicos fecham os olhos até que a tragédia anunciada aconteça. Este fenômeno ocorre em vários espaços da cidade, inclusive nas áreas de proteção ambiental, que são, em tese, protegidas.

O discurso político partidário enfatiza que as pessoas têm direito à moradia e isso é óbvio e ululante. Porém, há outro direito inalienável que deve ser respeitado antes mesmo do direito à moradia. Trata-se do direito à vida. Quando uma família finca uma casa em um lugar que tem 90% de chance de sofrer inundações e ou deslizamentos, os poderes públicos tem que agir e retirar esta família de lá para que a família tenha seu direito à vida respeitado. Infelizmente não é o que vemos. Dezenas de famílias continuam vivendo em locais de alto risco, o lixo continua lá, o esgoto sanitário é despejado livremente na natureza, etc.

Uma das melhores iniciativas das décadas de 1970/1980 para a resolução deste tipo de problema foi a criação de conjuntos habitacionais construídos pelo sistema BNH (Banco Nacional de Habitação). Há muitos críticos ao sistema, principalmente ao fato dele ter priorizado moradias verticais em detrimento da tradição petropolitana que prioriza moradias horizontais. O fato, em minha visão, é o seguinte: o sistema BNH permitiu que famílias populares tivessem acesso à casa própria em locais seguros. Todos foram construídos por empresas que realizaram estudos sobre a topografia de Petrópolis e propuseram alternativas preventivas para as chuvas e os deslizamentos. Resultado: as pessoas vivem bem e seguras. Ambos os direitos estão garantidos: à vida e à moradia.

Depois de ouvir a fala do prefeito e descobrir que a culpada foi a chuva eu fiquei pensando. Será que a prefeitura da cidade recolheu e processou o lixo como deveria ter feito? Realizou obras de contenção de encostas onde era necessário? Combateu o assoreamento dos rios como deveria ter combatido? Retirou e acolheu famílias que por conta de questões diversas estão vivendo em áreas de altíssimo risco? Fiscalizou a ocupação desenfreada de áreas de proteção ambiental? Modernizou o sistema de esgotamento sanitário?

Eu, particularmente, sou contra o discurso que culpa a natureza pelas tragédias. É claro que as mesmas águas de março que inspiraram Tom Jobim são capazes de causar muita destruição. Porém, se os homens fizessem o dever de casa, seria bem mais fácil resistir e conviver com a força das águas. Eu realmente gostaria de ver um trabalho preventivo ocorrendo de fato porque não vejo a hora de parar de contabilizar os amigos perdidos e as vidas destruídas. Eu poderia apresentar uma lista, mas seria triste demais. Afinal, qualquer petropolitano tem também sua listinha e sabe bem como é terrível não poder apagá-la.

sábado, 2 de março de 2013

Estômago: a boca, o corpo e o sexo.


Lá na cidadezinha de minha avó dizia-se que “homem se prende pela boca”. Era um tipo de conselho dado às moças casadouras que deveriam aprender a cozinhar para aqueles que seriam “seus” homens. Nós, os homens, brincávamos com o conselho dizendo que as mulheres deveriam nos prender com a boca. O duplo sentido da afirmação causava rubores os mais diversos, principalmente nas moças que, por acaso, ouviam as conversas masculinas.

Quando cheguei ao Rio de Janeiro percebi rapidamente que minhas histórias com duplo sentido não deixavam ninguém ruborizado. Certa vez brinquei com uma de minhas colegas de graduação dizendo que ela deveria seguir a lógica das meninas de Minas e me prender com a boca. A resposta veio, como pergunta, de imediato: “qual das duas?” Quem acabou ficando sem graça fui eu.

A situação descrita é “boa para pensar” a relação entre sexo e comida. No Brasil, diz-se que quando alguém vai fazer sexo e assume postura ativa, está “comendo” alguém. A metáfora é curiosa e brilhantemente explorada em “Estômago”. O filme é um dos resultados de um acordo de co-produção bilateral Brasil-Itália. Foi produzido no Brasil e finalizado na Itália.

Não é a primeira vez que elogio um filme protagonizado por João Miguel. Em “Estômago”, ele dá vida à Raimundo Nonato, migrante sertanejo que descobre seu talento culinário quando vai trabalhar de graça em um boteco que servia pastéis e coxinhas. Com seu sucesso, é descoberto pelo dono de um restaurante italiano, que o leva para aprender os mistérios da alta gastronomia.

Boa parte do filme se passa em uma penitenciária, onde Raimundo Nonato cumpre pena por ter encerrado sua carreira com um crime cometido dentro do restaurante onde trabalhava. Raimundo, apelidado Alecrim, transforma sua cela em uma cozinha onde conquista poder e admiração dos outros presos ao transformar as refeições diárias em pratos requintados.

As melhores cenas ficam por conta de João Miguel e Fabiula Nascimento. Ela interpreta uma prostituta glutona, pela qual Raimundo Nonato se apaixona e a conquista oferecendo pratos cada vez mais requintados. Ela descobre Raimundo quando come uma das coxinhas feitas por ele e geme longamente com o prazer proporcionado pelo petisco.

Depois disso, o casal protagoniza uma sequência de cenas onde os prazeres do sexo e da comida se misturam. Na melhor delas, a prostituta está comendo um prato de massa ao suco, enquanto é comida por Raimundo Nonato. Suas feições expressam um prazer incomensurável, mas é impossível dizer qual das sensações está mais gostosa.

“Estômago” é fantástico para pensar as trajetórias de dois sujeitos sociais que se encontram no universo urbano e se relacionam – dando de comer um ao outro. A efemeridade desta relação associada à individualidade dos personagens permite refletir sobre vários pontos presentes no debate antropológico sobre o mundo urbano. O fim da relação do casal é um dos pontos mais quentes do filme, mas deste eu não vou falar. Fica a indicação e o suspense sobre o final...

O mais curioso disso tudo é que mesmo acompanhando os lançamentos nacionais bem de perto, nunca ouvi falar em “Estômago” até o momento em que foi anunciado no Canal Brasil. O filme ganhou dezenas de prêmios, nacionais e internacionais, mas pelo visto ficou pouquíssimo tempo nas telas. Por que será que o cinema brasileiro, exceção feita às comédias, atrai pouco público? É uma questão de matar.