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Sou um antropólogo brasileiro especializado em temas educacionais. Meus trabalhos focalizam as relações existentes entre a educação escolar e outras esferas da vida social. Atualmente, desenvolvo pesquisas sobre estratégias familiares e projetos de escolarização nas camadas populares das cidades do Rio de Janeiro e Petrópolis, ambas no Brasil. A abordagem inclui reflexões sobre a educação básica e o ensino superior. O debate sobre a construção social das juventudes é privilegiado porque permite interpretações refinadas sobre as relações entre educação escolar e expectativas de futuro. Trabalho no Departamento de Fundamentos da Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro-UFRJ onde ensino antropologia e sociologia da educação, além de orientar estudantes interessados no debate entre ciências sociais e educação.

terça-feira, 28 de maio de 2024

Dona Alzira, o moleque e o fumo de rolo

No dia 27 de maio de 2024 participei da banca de qualificação da Beatriz Barral, orientanda da Mariane Koslinski. Trata-se de um trabalho sobre escolas do campo, realizado em um município do interior do Estado de Minas Gerais. A qualificação foi ótima. É um trabalho com foco específico na discussão sobre as turmas miltisseriadas, que revela uma série de questões relacionadas às escolas do campo.

Para além do trabalho acadêmico em termos estritos, a participação na banca trouxe dezenas de memórias da minha infância. Eu nasci e cresci num espaço meio que fronteiriço, entre o urbano e o rural, além de ter passado boa parte das minhas férias escolares na roça. Campo, campesinato, campesino são categorias analíticas. Roça é uma palavra afetiva.

Lá na minha roça, quando eu era menino, detestava ser chamado de moleque. Não sei bem por quais motivos, mas eu achava o termo depreciativo. Podiam me chamar de qualquer coisa: garoto, menino, grandão, magrelo. Nenhum destes termos me incomodava. Mas quando alguém me chamava de moleque eu tomava como uma afronta terrível.

Dona Alzira só me chamava de moleque. Que ódio que eu tinha daquilo. Ela era uma senhora muito velha, na minha percepção de criança. Com os olhares de hoje, eu apostaria nuns 60 anos ou até menos. Mas para mim, naquele momento, ela era velhíssima, o que colocava um problema central. Eu fui educado para respeitar os mais velhos e, no caso de qualquer entrevero com um deles, me calar e simplesmente contar para a minha mãe ou o meu pai. Daí que quando Dona Alzira dizia: “Oi, moleque!” eu apenas respondia: “Bom dia, Dona Alzira!” e ficava recitando respostas desaforadas, incluindo vários palavrões, que nunca saíam da minha boca. Minha mãe nem ligava. Achava até engraçada a minha raiva com a palavra e repetia ad nausean: “deixa a Dona Alzira quieta, menino”.

Ela só ficou brava um dia no qual a minha raiva me fez cometer um tremendo equívoco. Minha mãe pediu que eu fosse ao bar do Tarcísio, era uma espécie de venda da região, para comprar algumas coisas para a casa. Para ir ao bar do Tarcísio, eu precisava passar em frente à casa da Dona Alzira. Nestes casos, eu passava sempre correndo, fugindo dos cumprimentos desaforados. Eis que nesse dia, no meio da corrida, eu escuto: “oh moleque. Você tá indo no bar do Tarcísio?”. “Sim senhora, Dona Alzira”. E lá veio a Dona Alzira com uma lista de compras. “então traz essas coisinhas para mim”.

Olhei para aquela lista, mais a lista da minha mãe e pensei: vai dar um montão de bolsas, um peso danado. Mas lá fui eu, ruminando a raiva. Comprei tudo, entreguei a parte da Dona Alzira e segui para casa.

Ocorre que quando minha mãe foi conferir as compras ela começou a perguntar onde estavam as outras coisas. Quais coisas?  As coisas que eu mandei você comprar.

Arregalei os olhos e entendi tudo. Eu tinha misturado todas as compras e Dona Alzira havia ficado com parte das compras da minha mãe. Foi um alvoroço. Tomei uma bronca danada e minha mãe passou a viver um tremendo dilema moral. Pedir de volta as compras à Dona Alzira poderia ser visto como uma acusação. Não pedir, causaria um prejuízo enorme porque ela teria que comprar tudo de novo. Dona Alzira era velha. Obviamente não agiria de má fé ficando com as coisas da minha mãe, mas poderia deixar tudo lá sem nem perceber.

No final das contas, decidimos que iríamos deixar para lá. Minha mãe entendeu que não valeria a pena correr o risco de criar uma “confusão com os vizinhos”. Até porque ela não tinha certeza se, de fato, eu tinha entregado as coisas dela para a Dona Alzira ou se eu simplesmente tinha esquecido ou perdido. Na roça, prezamos muito as relações que temos com os vizinhos.  E lá fui eu de novo ao Bar do Tarcísio para comprar o que faltava. Mas no meio do caminho eu ouvi “oh, moleque, isso aqui que você me entregou não é meu. Deve ser da tua mãe. Leva embora”. Fiquei tão aliviado que nem percebi que eu tinha, novamente, sido chamado de moleque.

Dona Alzira morava em um lugar em frente à um espaço amplo, de terra batida, ótimo para jogar bola. Eu e meus amigos adorávamos jogar bola lá, e ela detestava. Nossa algazarra a incomodava, ela nos xingava toda vez que a bola caia no terreno dela e ameaçava furar a bola. “Pelo amor de Deus, Dona Alzira. Tenha piedade”. Colocar Deus na história sempre funcionava. Ela xingava e jogava a bola de volta, sem furar, e nós seguíamos com o futebol.

Certo dia, eu estava jogando descalço e numa dividida pisei em uma ponta de pedra com o calcanhar. Doeu muito, parei de jogar por uns minutos e logo retornei para a pelada. Quando cheguei em casa eu estava mancando. Minha mãe olhou, perguntou o que tinha acontecido, apertou meu pé inteiro e achou que não seria nada. Mesmo assim me deu uma bronca por estar jogando descalço.

No dia seguinte eu mal conseguia colocar o pé no chão. Como não queria mais uma bronca, calcei o tênis da escola e fui andando na ponta do pé, disfarçando a dor. No final daquele dia já não dava mais. Estava doendo muito. Cheguei em casa, minha mãe fez compressas com água quente, sal e vinagre. Água quente, sal e vinagre são um tipo de poção mágica para entorses, estiramentos e outros. Sempre que eu me machucava, e isso acontecia com enorme frequência, dá-lhe água, sal e vinagre. Mas desta vez não adiantou nada.

No terceiro dia lá estávamos no pronto socorro. Eu, arrastado pela minha mãe, olhando para a cara de um médico simpático que disse: “ih, tá feio esse negócio. Tem que ver se não pegou no osso”. Congelei totalmente naquele momento. Eu não sabia o que era “pegar no osso”, mas imaginei que fosse terrível. Saí de lá com uma lista de remédios. Tomei tudo e nada adiantou. Neste momento, meu calcanhar estava inchado e visivelmente inflamado.

Voltamos ao médico, que disse: de fato, os medicamentos não deram conta. Vamos dar uma injeção nele e vou passar outras. Eu odiava injeções e tomei muitas e muitas em várias situações. Parecia que tudo só se resolvia com uma bendita injeção. Tomei e saí de lá com a receita para mais uma, dali a sete dias.

Quando estávamos voltando para casa, escuto a voz da Dona Alzira, dirigindo-se à minha mãe, que me arrastava enquanto eu praticamente pulava com um pé só: “Ôpa. O que foi com o moleque?”. Uma dor danada e aquela voz me chamando de moleque de novo era de matar.

Minha mãe aproveitou para descansar um pouco e contou a história toda. Daí dona Alzira disse: “me dá esse pé aqui. Vou resolver isso”. Não entendi bulhufas. Se nem os remédios resolveram, Dona Alzira iria resolver de que forma?

Ela pegou meu pé, mexeu nele para lá e para cá, desenhou com o polegar alguns símbolos sagrados de religiões ancestrais e foi para dentro da casa. Voltou de lá com um pedaço de fumo de rolo. Para quem não sabe o que é fumo de rolo, são folhas de tabaco enroladas de forma que ficam parecendo uma corda. Quem faz uso, vai cortando os pedacinhos para fazer cigarros de palha ou então mascar. No caso de Dona Alzira, ela usava para fumar cachimbo.

Dona Alzira entregou o pedaço de fumo para a minha mãe e disse: quando chegar em casa, corta o suficiente para cobrir o calcanhar dele todinho, esquenta com um pouquinho de azeite, coloca no pé e enrola uma fralda do menino pequeno (meu irmão caçula) no pé dele. Tem que ser fralda para poder respirar. Eram fraldas de pano, claro. Deixa o dia inteiro e troca à noite para dormir. É só fazer isso que vai ficar bom.

Dona Alzira tinha benzido o meu pé. Os símbolos sagrados de religiões ancestrais que ela desenhou com o polegar no meu pé diziam muita coisa. Eu e minha mãe não sabíamos exatamente do que se tratava, mas era evidente que fora uma benzeção.

Eu sei que no dia seguinte, pela manhã, eu já colocava o pé no chão e cinco dias depois estava caminhando quase sem dor. Obviamente não dá para saber se foi a injeção, a benzeção, o fumo de rolo, a eficácia simbólica do cuidado da Dona Alzira comigo ou tudo isso junto.

No final das contas, eu e minha mãe preferimos atribuir a cura à Dona Alzira. Voltamos lá, eu mostrei, todo orgulhoso, o pé curado e ela me disse: “tá vendo, moleque, eu te falei que iria ficar bom”.

Desta vez, nem liguei de ser chamado de moleque. Era só uma forma carinhosa de me chamar, tão carinhosa quanto o cuidado que ela teve comigo ao me benzer. Desde então ela podia me chamar de moleque sem causar raiva, mas só ela.

sábado, 23 de dezembro de 2023

Um homem chamado Liberdade

Em novembro de 2023 recebi um presente de um amigo querido: o livro: “Um homem chamado liberdade”. Fui presenteado pelo próprio autor: Jelcy Rodrigues Corrêa Júnior.

Jelcy foi meu professor e trata-se de uma das pessoas com quem mais aprendi na vida, no auge da minha adolescência em Petrópolis. Ele era a maior referência da minha turma de ensino médio. Alguém que ensinava dialogando nos nossos próprios termos e conseguia, com primor, realizar todos os deslocamentos pedagógicos necessários para que transpuséssemos as redomas dos nossos próprios circuitos de socialização e percebêssemos o mundo social em sua grandeza e diversidade, que estavam para além de nós mesmos.

Ele nos ensinou um pouco de tudo: grandezas matemáticas, economia brasileira, normas e regras de gerenciamento, filosofia, literatura e história brasileiras. Como ele conseguia esta proeza? Inserindo conteúdos na forma de um bate-papo com uma garotada que estava ali, quase concluindo o ensino médio e sem saber bem o que faria da vida. Ele estava conosco, dentro e fora das salas de aula, nos corredores, nas confraternizações, no refeitório, no cafezinho; e atraía todos nós com as suas conversas sobre tudo.

À época, eu e meus amigos mais próximos desenvolvíamos teorias sobre o Jelcy. Imaginávamos que ele tivera passado toda a vida estudando, que deveria ter uma biblioteca gigantesca em casa e que já deveria ter lido tudo o que estava disponível por lá. Chegávamos a conjecturar que toda a sua família deveria fazer a mesma coisa: ficar o dia inteiro em uma biblioteca trocando ideias e conhecendo o Brasil. Nunca comprovamos as teorias e seguimos acreditando nelas piamente até hoje.

Um homem chamado liberdade conta parte da história de Jelcy com seu pai, também chamado Jelcy. Ao ler as linhas, conheci um pouco mais deste professor que tanto me inspirou na vida e na minha profissão. Em certa medida, Jelcy filho é um dos responsáveis por eu ter me tornado professor. Assim como o pai, ele tornou-se uma referência para muitas pessoas, inclusive para os seus alunos.

O livro começa pelo fim. Acometido pela COVID-19, Jelcy pai foi internado e deixou a família inteira preocupada com o desenrolar do tratamento, que infelizmente não foi suficiente. Jelcy pai foi mais uma das vítimas da pandemia e do descaso do governo brasileiro com a população. Depois deste início trágico, o texto oferece um passeio sobre uma vida de luta, militância e compromisso político, ético e moral de um homem e de sua família. Entre idas e vindas, presente e passado se entrelaçam na narrativa, tecendo um caminho que permite ao leitor conhecer as ações e as estratégias profissionais e familiares que Jelcy pai desenvolveu, dado o campo de possibilidades disponível para ele e sua família durante a sua vida.

Jelcy filho, o autor, constrói um texto muito parecido com as suas aulas. Uma narrativa leve, entremeada por histórias, repleto de informações objetivas sobre o cenário político brasileiro e, principalmente, inundado por emoções e afetos relacionados ao seu pai, à sua família e à sua própria vida. Não darei nenhum spoiler do livro além do que já escrevi aqui. Espero que os leitores destas linhas busquem o livro, mergulhem na história e envolvam-se com os personagens presentes. A história deles também é a história do Brasil.

Depois de ler o livro conheci um pouco mais sobre o Jelcy filho. Ele, assim como o pai, trabalhou e trabalha em silêncio, oferece ideias gratuitamente para quem as quiser, apresenta perspectivas, defende posições, acolhe as dúvidas. É a síntese do que é ser professor. Por vezes, os professores passam a vida sem saber da importância que tiveram na vida dos alunos. Falo isso também por profissão. Nós realizamos as aulas, corrigimos os trabalhos, dialogamos com os alunos. Depois de tudo, eles seguem seus caminhos e não mais sabemos o que ocorreu, o que ficou em cada aluno do que quisemos oferecer. Para o Jelcy, digo que ele me ofereceu muito e que hoje, após mais de 30 anos, ainda guardo fragmentos das suas aulas e das suas conversas. Acredito que o mesmo aconteça com meus colegas de turma, hoje todos quarentões, e alguns já cinquentões.

As referências completas do livro são:

Corrêa, Jr. Jelcy R. Um homem chamado liberdade. Petrópolis: Rio de Janeiro: Edição do autor, 2023. 

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2023

A batalha da antropologia contra o chatGPT

 Era uma vez um algoritmo safado, arretado, que de tamanha “inteligência” fazia até poesia.

Um cabra virou e disse: esse aí, vai fazer até antropologia!

Sabe de nada esse cabra. Acha que antropologia é a soma de um montão de palavras numa frase e num parágrafo, mas não é, não.

O tal algoritmo pode ser “inteligente”, mas não tem sensibilidade e não sabe interagir.

Interação é coisa da gente, do povo contente.

É o antropólogo que se mete em tudo, vai para o meio do povo e fica por lá.

Olhando, escrevendo, pensando, sentindo e se arrumando com a gente no ato de interagir.

O abestado desse algoritmo se olhar para tudo isso vai é sair correndo.

Vai dizer para ele mesmo que precisa de mais uma fonte para tentar deduzir.

O povo rindo vai dizer que se não entende é porque não é gente e não pode se divertir.

E no final, o antropólogo sai de lá modificado, sensibilizado e prontinho para contar para todo mundo o que ele era e o que passou a ser depois de se meter lá no meio do povo.

Já o algoritmo tá perdidinho, deduzindo daqui e de lá o que não se pode deduzir.

Sai fora, montão de número, a vida é maior do que você.

quinta-feira, 6 de outubro de 2022

Um lanchinho frugal, a morte e a vida que fica: homenagem ao meu pai.

 

Meu pai morreu na terça-feira, dia 04 de outubro de 2022, à noite, por conta de uma parada cardiorrespiratória. Tinha 81 anos. Desde 2019 ele vinha lutando contra um conjunto de doenças severas: Parkinson, diabetes, doença renal crônica, pneumonias sucessivas. Foi uma batalha gloriosa e muito severa. Estive ao lado dele durante todo esse período e aprendi muito sobre a existência humana em seus princípios mais elementares.

Ele foi um humano típico. Errou, acertou, brigou, reconciliou, praguejou contra o que considerava injusto, deu e recebeu carinho, agregou pessoas, separou pessoas. Nunca teve qualquer autocensura sobre o que pensava, de forma que simplesmente abria a boca e deixava o que estava na cabeça sair, por vezes inundando os ambientes com a acidez do que vociferava com a enorme voz que possuía.

Nos últimos anos estivemos muito juntos e nos últimos meses fizemos algumas viagens – de Petrópolis ao Rio de Janeiro – para ele realizar exames e consultas médicas. Essa convivência me permitiu sentir o quanto aquele homem amava viver; sabia que estava em seus momentos finais e os aproveitava como se fossem os últimos.

Em uma dessas viagens, paramos para fazer um lanche. Estávamos eu, ele e meu irmão caçula. Comprei uns croquetes e água para comermos no carro mesmo. Ele já não andava e era muito difícil retirá-lo do carro, colocá-lo à mesa. Tudo era muito difícil e cansativo para ele. Por isso, ficamos ali no carro sentados, ouvindo chorinho e comendo os croquetes. A deglutição dele estava muito prejudicada. Demorava para morder, mastigar, engolir e se engasgava toda hora. Foi assim com o primeiro croquete. Engasgou tanto que eu e meu irmão ficamos preocupados e decidimos não dar o segundo. Não ali. Daríamos quando ele chegasse à clínica na qual estava internado. Ficou puto, me olhou com cara feia e disse “me dá o segundo bolinho”. Não dei. Disse que daria quando chegássemos à clínica. Aceitou sem concordar e seguimos. Durante o restante da viagem estendeu a mão e me pediu o croquete sei lá quantas vezes, e quando eu dizia que ele comeria na clínica, ele afirmava: “não vai ser a mesma coisa”.

Já em Petrópolis, decidi parar o carro e dar o croquete antes de chegarmos à clínica. Feliz da vida, começou a comer de novo, engasgou-se de novo. Ficou ali, literalmente lutando com aquele croquetinho. Perguntei se estava bom e ele disse: “tá, mas quentinho lá na loja estava muito melhor”. Depois disso chegou à clínica todo feliz, contando para os enfermeiros que tinha feito um lance muito gostoso, mesmo assim queria almoçar.

Noutra viagem, assim que entrou no carro fez o ritual de sempre. Apontou para o rádio do carro pedindo a musiquinha, o chorinho que ele gostava e não entendia bem de onde saia. Eu usava o celular, com uma playlist de chorinhos clássicos e aquilo tudo era um grande mistério para alguém que nasceu e viveu a maior parte da vida sem internet. Musiquinha ligada, vem a pergunta: “vai ter bolinho?”. Ele estava descendo para fazer uma consulta séria, que definiria o tratamento dele a partir dali e só tinha uma preocupação: se teria bolinho no retorno. Depois, um dos enfermeiros que cuidava dele me contou que havia outra: a roupa. Ele reclamava muito enquanto estavam escolhendo as roupas dele porque queria vir ao Rio bem bonito e sem roupas repetidas. Bruno, o enfermeiro, achava graça e o tratava como se também fosse filho dele. Bruno é um dos melhores profissionais que conheci nestes tempos. Todos que trabalham na clínica são excelentes, mas Bruno é excepcional. Meu pai o adorava e ele ao meu pai. Como diz a minha mãe, foi um encontro de almas.

No meio do caminho de volta, ele me perguntou algumas vezes: “tá chegando o bolinho”. Eu respondia que sim, mas o tempo para ele era urgente e como uma criança pequena só sossegava quando chegava à lanchonete. Comemos bolinhos de novo, engasgou-se novamente; ficamos ali parados: eu, ele e meu irmão, por quase uma hora enquanto ele comia os seus dois croquetes.

Neste dia ele percebeu que eu e meu irmão também comemos um éclair de chocolate. Depois que finalmente terminou os bolinhos eu perguntei: vamos? E ele: “não! E meu chocolate?” Não dei o chocolate. Era demais para quem iria subir serpenteando a serra de Petrópolis. Não dava para assumir o risco de um engasgo, vômito... tudo era muito perigoso. Prometi o chocolate para a outra viagem, mas infelizmente não deu tempo. Ele chegou contente na clínica, feliz com a viagem, o lanche, pronto para almoçar e ir para a cama.

Toda essa história foi contada para sublinhar o que ele me ensinou. Cada segundo da vida vale a pena. Um homem doente, impossibilitado de andar, que precisava de quase uma hora para comer dois croquetes, com dores permanentes em várias partes do corpo, acometido por um cansaço enorme quando fazia qualquer atividade e, ao mesmo tempo, absolutamente realizado por fazer um lanche com os filhos e poder aguardar o próximo, com chocolate. A vida dele valeu a pena. Agora morreu, mas vive em mim, no meu irmão caçula, na minha irmã, na minha mãe e em todas as pessoas com as quais ele conviveu. E todos nós somos o que somos também porque ele viveu.

Aproveitem cada segundo com seus pais. Encontrem toda a vida que está presente em um lanchinho frugal e façam isso o quanto antes. Nunca sabemos quando vai acabar. Esses momentos permitem que nós compartilhemos as nossas existências em toda amplitude do que significa existir. Tenho certeza de que o “seu João” viveu e morreu sabendo disso. Muito obrigado, pai. 

 

 

segunda-feira, 25 de abril de 2022

A perspectiva feminina na matança do porco e outros animais.

Minha prima, Adriana Machado, escreveu um texto detalhando a participação das mulheres e das meninas nos rituais. Ela revela uma série de questões, inclusive relacionadas à socialização das meninas para serem moças "prendadas" e habilitadas ao casamento. Vamos ao belo texto:

Por: Adriana Machado

Sou a prima do antropólogo Rodrigo Rosistolato, a que morava em outro bairro. 

Sempre vivi em meio aos animais, minha vó criava galinhas, coelhos e porcos. Depois do seu falecimento, meu pai adquiriu por herança esse hábito até os dias de hoje. Detalhe: é aqui na cidade grande. 

Houve uma época em  que a cozinha iria ser modificada para um novo cômodo,  mas meu pai comprara um porquinho achando que seria pequeno, e o bichão cresceu tanto que não tinha lugar para ficar, a obra foi esquecida esperando o tal famoso dia de matar o cachaço!! 

Os homens não deixavam as crianças participarem do momento da morte, diziam que a morte seria dolorosa se ficássemos  com  pena. No dia marcado, dependendo do tamanho  do animal e se o matador perdesse a confiança, inicialmente o porcão ganhava uma marretada na cabeça para "tontear," e depois o punhal era a ferramenta utilizada para sangrar o bicho. 

Nesse momento as mulheres se reuniam  para amolarem facas, preparar temperos, escaldar as latas em que as carnes seriam guardadas depois de prontas, porque nada era congelado.

Os homens permaneciam até o porco ser  morto, sapecado, aberto, separado o sangue e começar o tiragosto.

Posterior a isso tudo.

As mulheres iniciavam os trabalhos, lavar as tripas para o preparo do chouriço e das linguiças. Separar o toucinho das carnes, temperar e cozinhar tudo. 

Não tinham hora para dormir, só depois de tudo pronto. Os  homens sumiam da cozinha ou do quintal. Esse trabalho era exclusivo das mulheres e das meninas, que não podiam sair de perto, porque tinham que aprender como era feito todo o processo para a carne não estragar . 

Se a gente tentava escapar, a vó chamava: "vem menina, tem que aprender , como vai ser uma moça prendada, quem vai querer casar com océ!!" 

Ah, detalhe: era tudo feito no fogão a lenha, as mulheres ainda precisavam cuidar da lenha para não deixar que o fogo apagasse. 

Quanto às galinhas, também eram as mulheres que matavam, limpavam e cozinhavam sozinhas, sem ajuda dos homens. Isso quando as galinhas mesmo sem pescoço não ficavam pulando pela casa, sujando tudo até morrerem! 

Era um terror, hoje a gente ri!!! 

Não sei se devo comentar mas até hoje,  mesmo  sem espaço, meu veinho tem um galinheiro, convivo com o cheiro, o canto do galo na minha porta todos os dias. 

Mas não reclamo, é uma distração e uma briga sem tamanho entre ele e minha mãe! 

Ele quer matar umas galinhas de vez em quando para comer, e quem teria que depenar, limpar e fazer é a minha mãe. 

Ela não deixa. Diz que na panela dela não vai colocar galinha  nenhuma, porque demora mais de três horas no fogo para cozinhar!! Com isso, eles discutem e as galinhas vão vivendo até morrerem de velhice!!! 

É saudoso relembrar, sabores que não se igualam a nada hoje. 

Porém existem essas questões sobre as tarefas a serem realizadas, essa é do homem e essa é da mulher.

Contudo quais são as tarefas masculinas e femininas ???



sábado, 23 de abril de 2022

A matança do porco e os rituais de masculinidade

Matar porco na minha infância era “coisa de homem”. Os porcos eram criados nos quintais das casas e enquanto cresciam eram tratados como membros da família. Eram bem alimentados, cuidados durante a manhã, à tarde e à noite. Eles tomavam banho, recebiam afagos e até mesmo conversávamos com eles. Por vezes, gostávamos mais de uns do que de outros. Havia porcos mais violentos e outros mais carinhosos de forma que nossas relações com eles variavam em acordo com a “personalidade” que os bichos desenvolviam.

No mundo meio rural e meio urbano no qual nasci e cresci, todos os animais eram parte constitutiva das relações familiares. Havia muitas responsabilidades relacionadas a eles e muitos afetos. No caso dos animais de casa, como cães e gatos, eles viviam o tempo todo conosco. Já os animais de quintal, como porcos, galinhas, coelhos, ficavam fora da casa e eram proibidos de entrar. As galinhas vez ou outra quebravam essa regra e chegavam a fazer seus ninhos no interior das casas. Nesse caso, e somente nesse, elas tinham salvo conduto para permanecer na casa enquanto chocavam seus ovos, a não ser que os ovos fossem consumidos sem serem chocados. Daí elas tinham que voltar para o quintal imediatamente.

Minha mãe não era muito de criar bichos. Não era a dela. Já minha tia, que vivia na parte baixa do mesmo terreno, amava os bichos, tanto ela quanto meu tio. Minha outra tia por parte de mãe também criava bichos, mas eu não tinha contato diário com os bichos dela porque ela morava em outro bairro. No caso do nosso terreno, eu ficava para lá e para cá e sentia como se tivesse duas casas, duas mães, dois pais e mais duas irmãs que eram as minhas primas. Quando criança, entrava e saia de ambas as casas sem qualquer constrangimento. Eu também participava da “cria” dos animais da minha tia. Era divertido porque sempre tínhamos histórias dos e com os bichos. Alguns recebiam nomes, outros eram adjetivados por suas características mais ou menos agressivas, mais ou menos bagunceiras... e boa parte deles virava também “brinquedo de crianças”. Eu, meus irmãos e minhas primas vivíamos inserindo os animais nas brincadeiras, inclusive as galinhas que nos forneciam ótimas brincadeiras de detetive. Elas vez ou outra fugiam para o mato para “botar” seus ovos e era divertidíssimo segui-las e descobrir seus berçários secretos. Elas nos odiavam por isso e nos atacavam com seus bicos certeiros, mas nem ligávamos. Afinal, a diversão era acabar com o segredo das galinhas.

Havia diferenças centrais entre os bichos da casa e os do quintal. Os da casa ficavam conosco até morrer. Nunca eram comidos. Já os do quintal tinham um tempo mais curto conosco, duravam até o momento em que viravam um banquete. A morte dos animais era algo sereno nas minhas visões de criança. Os bichos de quintal estavam lá para serem consumidos em algum momento especial, e enquanto não eram, faziam parte de nossa vida. Não havia em mim grandes dilemas com relação a isso, embora tanto eu quanto meus irmãos e minhas primas nos afeiçoássemos aos bichos e precisássemos, por vezes, organizar despedidas para eles.

Em uma conversa de boteco com minha amiga Andréa Osório, antropóloga especializada nas relações humano/animal, contei a história da matança dos porcos. Ela ficou relativamente surpresa com o ritual porque embora conhecesse outros rituais de matança, os que vivi eram um tanto quanto diferentes. Vou contar agora o que contei para ela. Não se trata de um relato antropológico stricto sensu e eu jamais me meteria nas discussões antropológicas sobre as relações entre humanos e animais. Não tenho nenhuma entrada nesse campo. O relato deve ser lido como a descrição de uma memória de um homem que foi um menino meio da roça meio da cidade e depois virou antropólogo.

O ritual de matança dos porcos começava nas decisões sobre o momento certo de matá-los. Eles só eram imolados quando estavam gordos e bem crescidos, já estalando. Sabia-se que estavam prontos por intermédio de observações rotineiras diversas. Olha que pernilzão,  essa costelinha tá pedindo para ir para o prato já, que torresmo que vai dar, veja como está estalando. Para saber se estava estalando dava-se um tapa na “bunda” dos porcos e quando se ouvia um estalo sabia-se que era hora do bichinho, ou do bichão, virar comida. Daí iniciavam-se as tratativas para definir a hora certa.

A matança do porco dependia de uma logística relativamente complicada. Tinha que acontecer nos finais de semana porque envolvia outras pessoas da família extensa. Só os da casa não davam conta. Em geral, vinham o pai do meu tio, que era quem sabia matar o bicho, sua esposa, algum irmão de meu tio com a esposa e as crianças; e outros homens, amigos da região que iriam ajudar a segurar o bicho. Meu pai nunca participava porque “tinha pena”. Não se pode ter pena do bicho porque dizia-se que ele demora mais para morrer, sofre muito e até estraga a carne. Por isso, meu pai se recolhia e só aparecia bem mais tarde, quando o porco já estava morto e tinha virado petiscos, torresminhos e estava virando linguiça, costelinhas...

O pai do meu tio não tinha pena do bicho. Carregava um punhal que tinha entre 30 e 40 centímetros e sabia exatamente onde enfiá-lo, perto do “suvaco do bicho” para atingir o coração e permitir que o animal tivesse uma morte tranquila. Ele criticava muito aqueles que não sabiam “enfiar o punhal” porque acabavam dando várias punhaladas e faziam o bicho sofrer. No caso dele, a precisão o definia. Bastava uma única punhalada e o sangue jorrava como se fosse uma mangueira estourada. Era evidente que o coração fora atingido e logo o porco estaria morto. Enquanto o coração, mesmo apunhalado, ainda batia, recolhia-se o sangue que escorria para feitura do chouriço, uma iguaria que os porcos nos proporcionavam.

O pai do meu tio era tão sagaz que por vezes ele também segurava o bicho. Essa era a função principal dos homens. Usava uma mão para segurar e outra para apunhalar, e ainda dava bronca nos homens que não estavam “segurando direito”. Se não segurassem ele iria errar e o “bicho iria sofrer”. Ele sempre dizia: “ara, sô. Um bando de homi que não consegue segurar um bichinho desse. Bora, segura, sô”.

Em geral a bronca dele funcionava bem, mas quando os homens não seguravam direito ele mandava soltar. Daí deixavam o porco ficar mais calmo, relaxar, até que reiniciavam a matança. Quando isso acontecia, o pai do meu tio ficava bem bravo, mas logo se acalmava quando finalmente conseguia garantir a morte justa e serena do porquinho.

Depois de morto o porco dá um trabalhão danado. É necessário queimar os pelos, uma depilação que ocorre com muito álcool, foco e facas amoladas. Primeiro joga-se álcool em todo o corpo, depois o fósforo faz o papel dele. O fogo queima os pelos quase até a raiz e depois disso, raspa-se a pele queimada para retirar toda aquela matéria orgânica e deixar o porco bem limpinho. É necessário retirar os pelos até a raiz para que eles não “brotem na feijoada ou no torresmo”. Se os pelos não são totalmente retirados, quando as peles são cozidas ou fritas elas reduzem em tamanho e os pelos que já não apareciam mais acabam “brotando” estragando a estética do prato, o paladar dos comensais e deixando as cozinheiras envergonhadas. É por isso que não se pode usar uma simples gilete para depilar o porco. Além dos pelos serem muito grossos, a gilete não arranca a raiz dos pelos. Às vezes elas até eram usadas, mas o que resolvia mesmo era o fogo e a faca. Talvez hoje, as modernas ceras depiladoras dessem um jeito, mas não acredito muito.

Depois de queimado o porco é aberto pela barriga, retiram-se as vísceras e elas são lavadas, principalmente as tripas que depois de tratadas eram usadas para as linguiças e o chouriço. Daí o porco é progressivamente cortado, tratado, dividido. O ritual de divisão da carne é muito complexo e não caberia nesse post que já está ficando grande demais.

Mas, afinal, o que tudo isso tem a ver com masculinidade?

Bom, já dei algumas pistas. São os homens os responsáveis por matar, há uma hierarquia clara entre quem vai enfiar o punhal e os outros. Ser acusado de não segurar o porco direito é um ataque direto à masculinidade. Mas o que quero salientar para fechar o post é o meu lugar nisso tudo e um ponto específico do ritual que causou espanto à minha amiga na conversa de boteco.

Eu era um menino e como tal era lido como alguém que estava “aprendendo a ser homem”. Por isso, eu participava de tudo. Acordava cedo, antes de o dia raiar, ficava de papo tomando café, era vítima de todas as brincadeiras que homens adultos fazem com um moleque que quer lhes acompanhar, ajudava a segurar o bicho e finalmente chegou o dia em que virei homem.

Depois que as vísceras são retiradas, as costelas do porco ficam expostas e delas brota um “sangue ralo”, que conforme vai acumulado é retirado para compor o chouriço. Parte desse sangue, às vezes, é retirado com uma canequinha pequena e consumido pelos homens que mataram o bicho. Em uma das matanças, eu já estava longe dos homens, junto com minhas primas e quando começaram a beber o bicho eles me chamaram de volta. Fiquei surpreso com o chamado e corri até lá. Um deles me entregou a canequinha e disse: “vamos ver se é homem, já. Bebe o bicho”. Eu devia ter uns 10 ou 11 anos e não me fiz de rogado. Peguei a canequinha e bebi. Senti um gosto diferente. Esperava algo salgado e era também doce. Meio agridoce. É provável que eu tenha feito uma cara engraçada porque os homens caíram na gargalhada e disseram “tá aí, moleque. Agora virou homem. Sai fora daqui”.

Saí de lá todo pimpão ostentando aquela masculinidade adulta que eu acabara de receber depois de beber o bicho. Uma de minhas primas disse: “que nojo. Como é que você pode fazer isso? Vai lavar essa boca!”, ao que respondi: “eu não. Nojo nada. Isso é coisa de homem”.

Atualmente não há mais porcos criados em casa pela minha família. Houve muitas mudanças e passamos a ser mais urbanos do que rurais. Além disso, as normas sanitárias mudaram, o que também orientou mudanças culturais relacionadas aos bichos da casa e do quintal. Com isso, pelo menos no âmbito da minha família, os rituais de matança se perderam no tempo, junto com os rituais de masculinidade. Hoje não sei o que eu faria em meio a um ritual destes. Talvez reativasse o menino rural que ainda habita em mim, ou ficasse recolhido como meu pai para não atrapalhar a matança. Vai saber!


terça-feira, 15 de fevereiro de 2022

Petrópolis: tragédias são tragédias quando não são anunciadas.

Sou petropolitano e tragédias como a de hoje atravessam toda a minha vida. Já fui flagelado (é o termo que sempre usamos nessas situações), precisei abandonar uma das casas em que residi, a casa da minha infância, perdi amigos, familiares, vivi as dores da diáspora de vários que, como eu, de uma hora para outra viam seus mundos desaparecerem. Boa parte da minha família já perdeu tudo pelo menos uma vez. Alguns, mais de uma vez. 

Hoje uma prima perdeu todos os bens materiais. Um amigo de infância correu risco de vida ilhado em pleno centro da cidade, outros amigos estão apavorados com o que estão vendo, vivendo, sentido. 

As tragédias acontecem. Chove muito? Sim! Há encostas que deslizam? Sim! Os rios transbordam? Sim! Mas junto de tudo isso há décadas e décadas de total descaso dos poderes públicos com a cidade e todos os seus moradores. 

Petrópolis cresceu muito nos últimos 50 anos. Não vou encher esse post de dados porque não é esse o propósito. Cresceu muito, foi e é mal administrada. Boa parte da tragédia é simples tragédia, mas outro tanto é fruto de simples descaso. 

Nestes momentos todos sofrem e choram. Choram aqueles que foram diretamente atingidos e outros que não perderam nada, mas têm empatia com aqueles que perderam. 

A tristeza impera e ainda há muito por vir. Infelizmente está somente começando. 

E nesses momentos, como em tudo que é ruim no Brasil, quem mais sofre são os mais pobres, mais pretos, mais abandonados desde que nasceram. Perdem familiares, perdem amigos, perdem os bens materiais que nem têm para perder e morrem. 

É tragédia, é flagelo, é isso tudo. Mas também é muita incompetência das nossas gestões públicas nas últimas décadas.