A
série “Adolescência”, criada por Jack Thorne e Stephen
Graham e dirigida por Philip
Barantini está na crista da onda dos debates sobre meninos,
meninas, masculinidades, violências, interações juvenis e tudo o mais que toca
nas intelectualidades ao pensarem as questões geracionais. Não irei comentar a
série porque não quero dar nenhum spoiler. Eu assisti, achei muito boa, mas não
achei ótima. As minhas visões sobre a produção divergem de todos os amigos e
amigas que também assistiram, o que é muito legal. Estou citando a série porque
ela, e todas as conversas que dela derivaram, me remeteram ao trabalho de campo
que realizei para a minha dissertação de mestrado, nos idos do início deste século.
Naquele
momento, vivi uma imersão etnográfica em espaços escolares nos quais havia
projetos de orientação sexual. Observei, entrevistei professores e
adolescentes, analisei a legislação pertinente. Havia uma efervescência
relacionada às possibilidades que a escola teria para desenvolver discussões sobre
o corpo, lido como matriz da sexualidade, relações de gênero e prevenção a
Doenças Sexualmente Transmissíveis (hoje com nova nomenclatura: infecções
sexualmente transmissíveis).
Como
em todo bom trabalho de campo, ouvi militantes, pessoas favoráveis, contrárias,
entusiastas e li tudo o que encontrei disponível em jornais e revistas (a
internet ainda era muito incipiente) sobre a temática. Este preâmbulo todo
serve apenas para contar a história que a série me lembrou.
Em
conversa com um professor que era indiferente aos projetos, ele me disse que
era muito difícil falar destas questões com aqueles meninos porque eles eram
todos “catapultas”. De início, não entendi a metáfora e ele percebeu. Daí
explicou que os meninos eram “catapultas”. Eu, que tinha à época, 28 anos era “meio
catapulta”; e ele, o professor, já era “elevador”. Quando comecei a entender a
metáfora, ele disse: “tô falando da p...oca, meu amigo”. A p...oca destes
meninos é igual a uma catapulta. Basta ouvir a palavra sexo, cheirar uma
menina, ver uma fotografia, que o negócio sobe na hora. Você deve ser meio
assim. Eu já sou elevador. Ele sobe, mas vai de andar em andar, e se alguém
apertar o botão térreo, desce bem mais rápido.
Depois
de apresentar a sua metáfora para a sexualidade masculina, o professor caiu na
gargalhada e disse que, por isso, não dava muita bola para os projetos de
orientação sexual. Os meninos só pensavam nisso o tempo todo e,
consequentemente, ao ouvirem a palavra “sexual” já não prestariam atenção em
mais nada. A dissertação que escrevi e a tese relativizam esta visão do
professor e demonstram que, ao contrário, meninos e meninas tinham muitas
questões sobre o despertar da sexualidade, relacionamentos afetivos, amores,
afetos, entre outras. Quem tiver interesse pode ler os dois trabalhos ou os
artigos deles derivados, disponíveis na internet.
A
visão daquele professor é “boa para pensar”, no sentido que Lévi-Strauss
atribui a esta afirmação, em todos os reducionismos e silenciamentos
relacionados à masculinidade na sua vertente sexual. Há uma leitura
falocêntrica dos meninos – e dos homens – alimentada por esta e muitas outras
metáforas repetidamente utilizadas por homens adultos nos diálogos que travam
entre si e com os mais jovens. Ciente disso, uma das professoras observadas
fazia um exercício no qual pedia que meninos e meninas escrevessem livremente
sobre os nomes atribuídos aos órgãos sexuais. Daí aparecia um festival de palavras
no qual o órgão masculino era apresentado com nomes que remetiam frequentemente à violência, tais como: pau, pica, poderoso, cabo de vassoura, porrete, tigrão. Já o órgão feminino aparecia como pipoquinha, tchutchuquinha,
princesinha. Enquanto um conotava força e violência, o outro, no diminutivo,
não remetia a nenhum destes sentidos.
Estas metáforas dizem muito sobre a forma como lidamos com a sexualidade
masculina. Ela aparece sempre conectada com força, violência, virilidade e com
a responsabilidade de estar, digamos, “a postos” o tempo todo. Homens adultos
contam histórias para os homens mais novos, nas quais eles, os adultos, estão
sempre dispostos, disponíveis para as mulheres, verdadeiros fenômenos do prazer,
prontos para performar (este é um termo da moda) o macho viril com qualquer mulher
que apareça na frente deles. Os meninos acreditam nisso porque, afinal, são
homens adultos e referências. Daí todos estes elementos da cultura se
reproduzem. Não posso afirmar isso diretamente, mas em termos hipotéticos, acho
difícil imaginar o meu entrevistado se apresentando para os meninos mais jovens
como um “elevador”. Se o fizesse, seria uma exceção porque, nas dinâmicas
interacionais entre homens e meninos, eles – os homens – são sempre uns
colossos, enquanto os pobres meninos devem torcer para, quem sabe um dia, virarem
colossos também.
“Adolescência” fala de violências entre meninos e meninas, que têm um desfecho trágico. É ficção, mas a realidade está repleta de finais semelhantes com meninos e homens que cometem atrocidades causadas por todas as configurações da misoginia que os afetam. Problematizar as visões sobre as sexualidades masculinas, criticar todo o falocentrismo que permite metáforas como a da “catapulta” e do “elevador” pode ajudar a reduzir as tensões que atingem, em especial, os meninos. A misoginia, como toda forma de ódio, tem o sentido de eliminação do outro, mas ela revela muito para além disso: medo, insegurança, raiva de si próprio e um sentimento de inadequação a ideais que só existem no plano das representações sobre as masculinidades. Estas representações são reproduzidas ad nauseam por homens adultos que aterrorizam os meninos cobrando por performances que eles mesmos não têm, nunca tiveram, e nem deveriam ter. Elas fazem com que os meninos acreditem que as meninas - e as mulheres - esperam estas performances e repelem quem não as têm. O circuito é muito complexo e repleto de violências dolorosas. Mas como em todo circuito traumático, falar pode ajudar bastante. Os homens adultos podem contribuir diretamente, abrindo mão de contar as suas experiências sexuais como se fossem epopeias. No final, todo mundo ganha com isso.