Matar porco na minha
infância era “coisa de homem”. Os porcos eram criados nos quintais das casas e
enquanto cresciam eram tratados como membros da família. Eram bem alimentados,
cuidados durante a manhã, à tarde e à noite. Eles tomavam banho, recebiam afagos
e até mesmo conversávamos com eles. Por vezes, gostávamos mais de uns do que de
outros. Havia porcos mais violentos e outros mais carinhosos de forma que
nossas relações com eles variavam em acordo com a “personalidade” que os bichos
desenvolviam.
No mundo meio rural e
meio urbano no qual nasci e cresci, todos os animais eram parte constitutiva
das relações familiares. Havia muitas responsabilidades relacionadas a eles e
muitos afetos. No caso dos animais de casa, como cães e gatos, eles viviam o
tempo todo conosco. Já os animais de quintal, como porcos, galinhas, coelhos, ficavam
fora da casa e eram proibidos de entrar. As galinhas vez ou outra quebravam
essa regra e chegavam a fazer seus ninhos no interior das casas. Nesse caso, e
somente nesse, elas tinham salvo conduto para permanecer na casa enquanto
chocavam seus ovos, a não ser que os ovos fossem consumidos sem serem chocados.
Daí elas tinham que voltar para o quintal imediatamente.
Minha mãe não era muito
de criar bichos. Não era a dela. Já minha tia, que vivia na parte baixa do
mesmo terreno, amava os bichos, tanto ela quanto meu tio. Minha outra tia por
parte de mãe também criava bichos, mas eu não tinha contato diário com os
bichos dela porque ela morava em outro bairro. No caso do nosso terreno, eu
ficava para lá e para cá e sentia como se tivesse duas casas, duas mães, dois
pais e mais duas irmãs que eram as minhas primas. Quando criança, entrava e
saia de ambas as casas sem qualquer constrangimento. Eu também participava da “cria”
dos animais da minha tia. Era divertido porque sempre tínhamos histórias dos e
com os bichos. Alguns recebiam nomes, outros eram adjetivados por suas características
mais ou menos agressivas, mais ou menos bagunceiras... e boa parte deles virava
também “brinquedo de crianças”. Eu, meus irmãos e minhas primas vivíamos
inserindo os animais nas brincadeiras, inclusive as galinhas que nos forneciam
ótimas brincadeiras de detetive. Elas vez ou outra fugiam para o mato para “botar”
seus ovos e era divertidíssimo segui-las e descobrir seus berçários secretos. Elas
nos odiavam por isso e nos atacavam com seus bicos certeiros, mas nem
ligávamos. Afinal, a diversão era acabar com o segredo das galinhas.
Havia diferenças centrais
entre os bichos da casa e os do quintal. Os da casa ficavam conosco até morrer.
Nunca eram comidos. Já os do quintal tinham um tempo mais curto conosco, duravam
até o momento em que viravam um banquete. A morte dos animais era algo sereno nas
minhas visões de criança. Os bichos de quintal estavam lá para serem consumidos
em algum momento especial, e enquanto não eram, faziam parte de nossa vida. Não
havia em mim grandes dilemas com relação a isso, embora tanto eu quanto meus
irmãos e minhas primas nos afeiçoássemos aos bichos e precisássemos, por vezes,
organizar despedidas para eles.
Em uma conversa de boteco
com minha amiga Andréa Osório, antropóloga especializada nas relações
humano/animal, contei a história da matança dos porcos. Ela ficou relativamente
surpresa com o ritual porque embora conhecesse outros rituais de matança, os
que vivi eram um tanto quanto diferentes. Vou contar agora o que contei para
ela. Não se trata de um relato antropológico stricto sensu e eu jamais me
meteria nas discussões antropológicas sobre as relações entre humanos e
animais. Não tenho nenhuma entrada nesse campo. O relato deve ser lido como a
descrição de uma memória de um homem que foi um menino meio da roça meio da
cidade e depois virou antropólogo.
O ritual de matança dos
porcos começava nas decisões sobre o momento certo de matá-los. Eles só eram
imolados quando estavam gordos e bem crescidos, já estalando. Sabia-se que
estavam prontos por intermédio de observações rotineiras diversas. Olha que
pernilzão, essa costelinha tá pedindo
para ir para o prato já, que torresmo que vai dar, veja como está estalando.
Para saber se estava estalando dava-se um tapa na “bunda” dos porcos e quando se
ouvia um estalo sabia-se que era hora do bichinho, ou do bichão, virar comida.
Daí iniciavam-se as tratativas para definir a hora certa.
A matança do porco dependia
de uma logística relativamente complicada. Tinha que acontecer nos finais de
semana porque envolvia outras pessoas da família extensa. Só os da casa não
davam conta. Em geral, vinham o pai do meu tio, que era quem sabia matar o
bicho, sua esposa, algum irmão de meu tio com a esposa e as crianças; e outros
homens, amigos da região que iriam ajudar a segurar o bicho. Meu pai nunca participava
porque “tinha pena”. Não se pode ter pena do bicho porque dizia-se que ele
demora mais para morrer, sofre muito e até estraga a carne. Por isso, meu pai
se recolhia e só aparecia bem mais tarde, quando o porco já estava morto e
tinha virado petiscos, torresminhos e estava virando linguiça, costelinhas...
O pai do meu tio não
tinha pena do bicho. Carregava um punhal que tinha entre 30 e 40 centímetros e
sabia exatamente onde enfiá-lo, perto do “suvaco do bicho” para atingir o
coração e permitir que o animal tivesse uma morte tranquila. Ele criticava
muito aqueles que não sabiam “enfiar o punhal” porque acabavam dando várias
punhaladas e faziam o bicho sofrer. No caso dele, a precisão o definia. Bastava
uma única punhalada e o sangue jorrava como se fosse uma mangueira estourada. Era
evidente que o coração fora atingido e logo o porco estaria morto. Enquanto o
coração, mesmo apunhalado, ainda batia, recolhia-se o sangue que escorria para
feitura do chouriço, uma iguaria que os porcos nos proporcionavam.
O pai do meu tio era tão
sagaz que por vezes ele também segurava o bicho. Essa era a função principal
dos homens. Usava uma mão para segurar e outra para apunhalar, e ainda dava
bronca nos homens que não estavam “segurando direito”. Se não segurassem ele
iria errar e o “bicho iria sofrer”. Ele sempre dizia: “ara, sô. Um bando de
homi que não consegue segurar um bichinho desse. Bora, segura, sô”.
Em geral a bronca dele
funcionava bem, mas quando os homens não seguravam direito ele mandava soltar.
Daí deixavam o porco ficar mais calmo, relaxar, até que reiniciavam a matança. Quando
isso acontecia, o pai do meu tio ficava bem bravo, mas logo se acalmava quando
finalmente conseguia garantir a morte justa e serena do porquinho.
Depois de morto o porco
dá um trabalhão danado. É necessário queimar os pelos, uma depilação que ocorre
com muito álcool, foco e facas amoladas. Primeiro joga-se álcool em todo o
corpo, depois o fósforo faz o papel dele. O fogo queima os pelos quase até a raiz
e depois disso, raspa-se a pele queimada para retirar toda aquela matéria
orgânica e deixar o porco bem limpinho. É necessário retirar os pelos até a
raiz para que eles não “brotem na feijoada ou no torresmo”. Se os pelos não são
totalmente retirados, quando as peles são cozidas ou fritas elas reduzem em tamanho
e os pelos que já não apareciam mais acabam “brotando” estragando a estética do
prato, o paladar dos comensais e deixando as cozinheiras envergonhadas. É por
isso que não se pode usar uma simples gilete para depilar o porco. Além dos
pelos serem muito grossos, a gilete não arranca a raiz dos pelos. Às vezes elas
até eram usadas, mas o que resolvia mesmo era o fogo e a faca. Talvez hoje, as
modernas ceras depiladoras dessem um jeito, mas não acredito muito.
Depois de queimado o
porco é aberto pela barriga, retiram-se as vísceras e elas são lavadas,
principalmente as tripas que depois de tratadas eram usadas para as linguiças e
o chouriço. Daí o porco é progressivamente cortado, tratado, dividido. O ritual
de divisão da carne é muito complexo e não caberia nesse post que já está
ficando grande demais.
Mas, afinal, o que tudo
isso tem a ver com masculinidade?
Bom, já dei algumas pistas.
São os homens os responsáveis por matar, há uma hierarquia clara entre quem vai
enfiar o punhal e os outros. Ser acusado de não segurar o porco direito é um
ataque direto à masculinidade. Mas o que quero salientar para fechar o post é o
meu lugar nisso tudo e um ponto específico do ritual que causou espanto à minha
amiga na conversa de boteco.
Eu era um menino e como
tal era lido como alguém que estava “aprendendo a ser homem”. Por isso, eu
participava de tudo. Acordava cedo, antes de o dia raiar, ficava de papo
tomando café, era vítima de todas as brincadeiras que homens adultos fazem com
um moleque que quer lhes acompanhar, ajudava a segurar o bicho e finalmente
chegou o dia em que virei homem.
Depois que as vísceras são
retiradas, as costelas do porco ficam expostas e delas brota um “sangue ralo”,
que conforme vai acumulado é retirado para compor o chouriço. Parte desse
sangue, às vezes, é retirado com uma canequinha pequena e consumido pelos
homens que mataram o bicho. Em uma das matanças, eu já estava longe dos homens,
junto com minhas primas e quando começaram a beber o bicho eles me chamaram de
volta. Fiquei surpreso com o chamado e corri até lá. Um deles me entregou a
canequinha e disse: “vamos ver se é homem, já. Bebe o bicho”. Eu devia ter uns
10 ou 11 anos e não me fiz de rogado. Peguei a canequinha e bebi. Senti um
gosto diferente. Esperava algo salgado e era também doce. Meio agridoce. É
provável que eu tenha feito uma cara engraçada porque os homens caíram na
gargalhada e disseram “tá aí, moleque. Agora virou homem. Sai fora daqui”.
Saí de lá todo pimpão
ostentando aquela masculinidade adulta que eu acabara de receber depois de
beber o bicho. Uma de minhas primas disse: “que nojo. Como é que você pode
fazer isso? Vai lavar essa boca!”, ao que respondi: “eu não. Nojo nada. Isso é
coisa de homem”.
Atualmente não há mais
porcos criados em casa pela minha família. Houve muitas mudanças e passamos a
ser mais urbanos do que rurais. Além disso, as normas sanitárias mudaram, o que
também orientou mudanças culturais relacionadas aos bichos da casa e do
quintal. Com isso, pelo menos no âmbito da minha família, os rituais de matança
se perderam no tempo, junto com os rituais de masculinidade. Hoje não sei o que
eu faria em meio a um ritual destes. Talvez reativasse o menino rural que ainda
habita em mim, ou ficasse recolhido como meu pai para não atrapalhar a matança.
Vai saber!