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Sou um antropólogo brasileiro especializado em temas educacionais. Meus trabalhos focalizam as relações existentes entre a educação escolar e outras esferas da vida social. Atualmente, desenvolvo pesquisas sobre estratégias familiares e projetos de escolarização nas camadas populares das cidades do Rio de Janeiro e Petrópolis, ambas no Brasil. A abordagem inclui reflexões sobre a educação básica e o ensino superior. O debate sobre a construção social das juventudes é privilegiado porque permite interpretações refinadas sobre as relações entre educação escolar e expectativas de futuro. Trabalho no Departamento de Fundamentos da Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro-UFRJ onde ensino antropologia e sociologia da educação, além de orientar estudantes interessados no debate entre ciências sociais e educação.

sábado, 7 de novembro de 2020

“Praia dos ossos”, “família Doriana” e as punições diárias vividas pelas mulheres

Ângela Diniz foi uma socialite influente na segunda metade do século passado. Ela teve a sua vida abreviada, assassinada por Raul Fernando do Amaral Street. O crime deu origem a um dos julgamentos mais controversos da história do direito penal Brasileiro. Nele, a vítima foi transformada em algoz de sua própria morte, e esse argumento nonsense foi suficiente para convencer o tribunal do júri em primeira instância. O crime foi tratado como um “crime de honra” e, por isso, o assassino foi visto como vítima. Embora inacreditável, esse argumento esteve presente em nossos tribunais por longos anos. O assassino era conhecido por um apelido – Doca – e, por isso, o caso ficou conhecido na imprensa como “caso Doca Street”.

Quando eu fiz doutorado, fui orientado pela Mirian Goldenberg que, dentre muitos livros, escreveu um sobre outra Diniz, a Leila, que também morreu jovem, mas em um acidente de avião. O livro se chama “Toda Mulher é Meio Leila Diniz”, e já teve várias edições desde que foi lançado na década de 90 do século passado. Por conta do convívio com a Mirian, e das leituras de dezenas de textos acadêmicos relacionados às mulheres em específico e às relações de gênero em termos mais gerais, aprendi que em muitos casos as mulheres são punidas pela sociedade simplesmente por desejarem ser livres para definir seus destinos e suas relações afetivas. Leila Diniz foi idolatrada e punida. Endeusada e achincalhada, assim como Ângela Diniz. Ambas pagaram o preço pela liberdade, e foram mulheres que anteciparam comportamentos que só viriam a se consolidar muitos anos mais tarde. Elas bancaram todas as punições e os julgamentos sociais porque queriam ser livres para decidir o que fariam de suas próprias vidas.

É curioso pensar que precisei dessas leituras para perceber esse fenômeno tão corriqueiro, da punição social das mulheres que desejavam escolher as vidas que queriam viver. Eu tinha 22 anos na época, recém-chegado de uma cidade do interior onde as relações de gênero eram muito demarcadas e, também por isso, naturalizadas e quase nunca relativizadas no âmbito das interações cotidianas. Havia muitos casamentos tradicionais, minhas colegas de turma do ensino médio – não todas - pensavam em casar e ter filhos ainda muito jovens, montar uma casa, cuidar de seus maridos e de seus filhos, quase um comercial de Doriana.

Para quem é mais jovem e não viu ou não lembra do famoso comercial que deu origem à ideia de “família Doriana”, pode assisti-lo aqui: https://www.youtube.com/watch?v=avyxVkaaRtM. Doriana era uma margarina famosa na época. No comercial, uma mãe aparece correndo para lá e para cá, preparando alimentos, sempre com Doriana, servindo ao marido, aos filhos e aos avós que chegam na casa. No jingle, ao final, tem-se a pérola: “aqui tem Doriana a gente logo vê, os elogios são para você”. A dubiedade é a seguinte: a dona da casa corre para lá e para cá, não come, serve todo mundo e no final quem recebe os elogios é a margarina, não ela. Em síntese, para ser mulher você tem correr o tempo todo, não comer nada, agradar a todo mundo e ao final não receber nem mesmo os elogios por tudo o que fez. Esse era o recado do comercial para as mulheres da época.

A propósito: eu detestava Doriana. Era uma margarina terrível!

Mas o que isso tudo tem a ver com as duas Diniz – a Ângela e a Leila?

É simples, elas nunca quiseram uma “família Doriana”. Optaram por uma vida diferente, livre e desimpedida. Tiveram vários namorados, assumiram posturas controversas na grande mídia, não se preocuparam com o que era esperado de uma “moça de família” e seguiram com seus projetos de vida.

Eu me lembrei da Ângela Diniz por causa do podcast Praia dos Ossos. Uma amiga querida, futura antropóloga, me indicou esse podcast dizendo que estava impressionada com o caso, que ela não conhecia até então. O podcast foi idealizado e é apresentado pela jornalista Branca Vianna. Está disponível na radio novelo (https://www.radionovelo.com.br/praiadosossos/) por intermédio de vários aplicativos de som.

O nome “Praia dos Ossos” foi escolhido porque Ângela Diniz foi assassinada em uma casa na praia dos ossos, em Búzios. Não vou dar spoiler sobre o material. Vale muito a pena ouvir. Só queria destacar o intenso trabalho investigativo que foi realizado pela jornalista e por toda a sua equipe. Elas buscaram imagens de época, jornais, entrevistaram as pessoas que tiveram algum envolvimento (incluindo Doca Street), visitaram os cenários. Em síntese, um trabalho imenso com alguns bons tons de investigação etnográfica. Os podcasts são uma ótima novidade na minha visão, e esse tipo de podcast investigativo abre um campo de atuação bem interessante para antropólogas e antropólogos que desejam trabalhar com fatos históricos, dentro e fora da Universidade.

Ouçam “praia dos ossos”. Vale muito a pena! Esse trabalho, em minha visão, ajuda muito na relativização de preconceitos e discriminações de gênero e, consequentemente, no combate às desigualdades relacionadas a esses preconceitos e a essas discriminações. 

Referências:

Site da Rádio Novelo:

https://www.radionovelo.com.br/praiadosossos/

GOLDENBERG, M.. Toda mulher é Meio Leila Diniz. 2. ed. Rio de Janeiro: Record, 1995. 251p .