Lou
Reed dispensa comentários sobre suas habilidades musicais. Deus para alguns, Demônio
para outros, navega pelas ondas das rádios de todo o mundo com suas letras
repletas de ironias e sarcasmos que só poderiam ser produzidos por uma mente
atormentada e um fígado opilado.
Não
ignoro suas habilidades musicais, mas me interesso mais pelo toque literário
presente em suas letras. Ele já foi chamado de poeta das esquinas de Nova York,
mas eu preferiria chamá-lo de cronista das entranhas da metrópole e, quiça, das
metrópoles.
Qualquer
autor interessado em antropologia urbana deveria observar os versos de “Walk on
the Wild Side”. Ela fala de personagens urbanos, vivendo suas existências nas
fronteiras. Sexo, drogas, comportamentos desviantes compõem o cenário desta
canção embalada pelas garotas que cantam “doo do doo do doo do do doo...”.
É
curioso pensar nos motivos que levam estes personagens de fronteira a fazer
tanto sucesso. Também é curioso elucubrar sobre os movimentos que fazem com que
as grandes cidades cosmopolitas sejam espaços de confluência para estas
existências reprimíveis em outros contextos.
Hoje
ouvi “Walk on the Wild Side” e lembrei de uma história que permite lançar
algumas hipóteses sobre as questões propostas. Trata-se de um caso clínico analisado
por um professor em uma aula de psicologia da educação. Faz tempo que esta aula
aconteceu, mas o caso é muito bom para pensar as fronteiras e as grandes
cidades. Não direi, é claro, o nome do
analista e da paciente, mas garanto que é tudo verdade. Chamarei a paciente de Janele.
Janele vivia em uma cidade do interior do estado do Rio de Janeiro, uma cidade
daquelas compostas pela praça, o coreto, a igreja, a prefeitura e....só isso
mesmo. Era considerada a maluca da cidade. Vira e mexe enfrentava algumas
crises onde saía cantando pela cidade, bebendo, dançando e dando para todo
mundo. Os rapazes gostavam, mas a família ficava completamente envergonhada e
sem saber o que fazer. O médico da cidade a medicava com calmantes fortíssimos
e a internava por alguns dias. Passado o internato, Jane voltava ao “normal” e
reassumia sua posição de “louca da cidade”, mas agora controlada.
Quando
terminou o ensino médio,
Janele veio para a Capital, residir com alguns parentes
que viviam no Rio fazia tempo, e estudar na Universidade. Ocorre que logo no
primeiro semestre ela enfrentou uma de suas “crises”. Começou a cantar pelos
corredores da Universidade, dançar com seus colegas de turma e dar para quem
quisesse. Ficou uma semana assim e nada aconteceu. Melhor dizendo:
Janele não
tomou medicamentos, não foi internada, não foi nem mesmo criticada. Ao
contrário, ficou super popular entre os colegas e a família disse que ela
estava se adaptando muito bem ao Rio de Janeiro.
Janele não entendeu nada, mas voltou ao “normal” mesmo sem os medicamentos. Semanas depois,
teve outra “crise” e fez tudo de novo. Ficou ainda mais popular. Era muito
querida por todos e sua agenda social vivia lotada. Resultado:
Janele surtou!
No
surto, segundo o analista, perdeu completamente o senso de realidade; não sabia
onde estava, quem eram seus amigos, sua família. Não sabia nem mesmo quem era. Depois
de algumas semanas internada, Jane voltou ao “normal”.
Não
vou entrar na seara dos psicólogos. Pouco interessa saber se Jane tinha ou não
algum problema psicológico. O mais interessante é observar como os mesmos
comportamentos em cenários diferentes promovem hostilidade e aceitação. Em sua
cidade era louca. No Rio de Janeiro era legal. Em sua cidade precisava de
remédios e internação. No Rio de Janeiro precisava de badalação... Estas
contradições fundiram a cabeça da menina e ela acabou surtando de verdade. Não sei,
sinceramente, se os “surtos” que aconteceram na cidade natal eram surtos mesmo,
mas minha mentalidade interiorana consegue compreender as atitudes de sua
família. Compreender, não concordar!
Não
conheci nenhuma “Janele ” em minha cidade natal. Quando cheguei com minha
mentalidade interiorana ao Rio de Janeiro e encontrei várias “Janeles” fiquei
surpreso, mas foi uma surpresa extremamente positiva. Afinal, garotas que
cantam e dançam e... não fazem mal a ninguém. Fazem bem!
Lá
na minha cidade diziam que a cidade grande era perigosa porque era um lugar
onde se podia tudo. Não sei se é verdade, mas se pode bem mais por aqui do que
por lá. Este mundo urbano, cosmopolita, cantado por Lou Reed e analisado por
toda a antropologia urbana tem uma poética própria. É um lugar de confluência
de “malucos” onde todos os “malucos” são bem vindos, mesmo aqueles que desejam
ou preferem caminhar exclusivamente pelo lado selvagem.