Quem sou eu

Minha foto
Sou um antropólogo brasileiro especializado em temas educacionais. Meus trabalhos focalizam as relações existentes entre a educação escolar e outras esferas da vida social. Atualmente, desenvolvo pesquisas sobre estratégias familiares e projetos de escolarização nas camadas populares das cidades do Rio de Janeiro e Petrópolis, ambas no Brasil. A abordagem inclui reflexões sobre a educação básica e o ensino superior. O debate sobre a construção social das juventudes é privilegiado porque permite interpretações refinadas sobre as relações entre educação escolar e expectativas de futuro. Trabalho no Departamento de Fundamentos da Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro-UFRJ onde ensino antropologia e sociologia da educação, além de orientar estudantes interessados no debate entre ciências sociais e educação.

domingo, 27 de maio de 2012

Lula, os pobres e o avião


O ex-presidente Lula fez, dia 21 de maio, um discurso que me levou a lembrar de uma situação vivida em um avião. Quem indicou a fala do Lula foi minha esposa. Busquei o discurso no oráculo moderno – google – e encontrei Lula dizendo que em seu governo os pobres passaram a “andar” de avião; e completou: "fazer pobre andar de avião é difícil". Concordo plenamente com ele não somente porque a observação mais rotineira percebe a presença dos mais pobres nos aeroportos, mas porque as análises de fluxo aéreo indicam a mesma coisa: os pobres estão “andando” muito de avião.

Os dados são sempre frios e é possível saber que tantos por cento dos mais pobres passaram a voar. Para um antropólogo os dados frios não são suficientes porque, seguindo Malinowski, é necessário rechear o esqueleto com a carne e o sangue da vida social para que ele expresse a realidade de maneira mais coerente.

Não sou pesquisador da área, mas vivi um fato interessante, em 2009, em um vôo direto de São Luis do Maranhão para o Rio de Janeiro, que serve para ilustrar o fenômeno para além das estatísticas. Já contei esta história em dezenas de mesas de bar e em todas elas o diagnóstico foi preciso: este é um retrato do Brasil de Lula. Vou contar para vocês. Lá vai...

Fiz alguns concursos antes de ingressar no magistério superior. O primeiro em que fui aprovado foi para a Universidade Federal do Maranhão – UFMA. Na época, foi uma felicidade seguida de um transtorno. Minha mulher estava fazendo mestrado aqui no Rio e dependia da Biblioteca Nacional, o que a impedia de seguir comigo para São Luis. Fui sozinho e passei a fazer a “ponte aérea” São Luis/Rio em todos os feriados nacionais. Ela também fez algumas, mas o mundo manda que os homens corram atrás das mulheres e não o contrário.

O vôo não era dos mais agradáveis. Quatro horas seguidas, partindo de São Luis às duas horas da madrugada e chegando ao Rio às seis horas da manhã. Valia a pena, mas seguir para o aeroporto, embora poético, não era nenhuma delícia. Bom, em um destes finais de semana aconteceria um jogo de futebol entre o Flamengo e o Vasco, um jogo de campeonato.

Minha visão preconceituosa me obrigava a acreditar que ninguém, por mais fanático que fosse, iria pensar em futebol às duas da madrugada em um avião apertado, ainda em solo. Eis que entram oito homens, em fila indiana, sussurrando o hino do flamengo, balançando uma bandeira e batendo com as mãos no teto do avião. Eu estava lendo e, simultaneamente, cochilando. Pensei que estava sonhando, mas o sussurro foi ficando mais alto conforme a “equipe” se aproximava de mim. Todos uniformizados, cantavam o hino do flamengo, batiam com as mãos no teto e falavam sobre o avião enquanto buscavam seus lugares. Meu “instinto” antropológico despertou quando ouvi: “primeira vez de todo mundo junto”. Entendi que todos estavam voando pela primeira vez e tinham escolhido o Rio de Janeiro por causa do jogo do campeonato.

Fiquei pensando o quão democrática era aquela cena e como representava o Brasil pós- Lula. Confesso que só pensei assim até o começo do drama que se seguiu.

Estava tudo bem até que, não sei por quais motivos, um dos flamenguistas decidiu provocar o sujeito que estava sentado à sua frente. Começou com a tradicional brincadeira: “Ei bacalhau! Ei, Bacalhau! Vem chupar... o restante é impróprio para o Blog”. Ocorre que o sujeito da frente não gostou da brincadeira e pediu para parar.

Não satisfeito, o flamenguista decidiu passar a mão na cabeça do vascaíno e dizer para ele: “fica calminho”. Lembrem: tudo isso em um avião em solo às duas da madrugada!

O Vascaíno retirou, com violência, a mão do flamenguista de sua cabeça. Ele pediu, aos berros, para o flamenguista parar com aquilo.

Foi o suficiente para o irmão do flamenguista comprar a briga, sair de seu lugar gritando que ninguém faria aquilo com o irmão dele e “convidar” o vascaíno para uma luta no corredor do avião. De fato, ele arrancou o vascaíno da poltrona e os dois começaram a brigar.

Eu estava perto, bem perto dos torcedores lutadores e vi todos os socos que foram trocados; também vi a correria das aeromoças e ouvi os gritos assustados e atordoados dos passageiros, alguns diretamente envolvidos no trabalho coletivo de separar a briga.

A briga acabou e os passageiros voltaram para seus lugares rapidamente, inclusive os brigões. Ocorre que em 10 minutos havia um delegado da polícia federal, acompanhado de dois policiais para retirar os brigões do avião. O diálogo foi o seguinte:

- Olá, eu sou..., delegado da polícia federal. Fui convocado pelo piloto da aeronave e gostaria que os senhores me acompanhassem.

- O flamenguista respondeu com uma pergunta: para onde?

- Para fora da aeronave.

- Que isso, amanhã é jogo do mengão. Se eu não for nesse vôo já era.

- O vascaíno, solidário, disse: “que isso, seu puliça (sic), já tá tudo tranqüilo aqui, né não, irmão”.

- O flamenguista concordou de pronto, começou a chorar, abraçou o vascaíno e implorou ao “seu puliça” que o deixasse falar com o piloto. Ele acreditava piamente que poderia convencer o piloto a deixá-lo no avião. O principal argumento era o jogo do mengão.

- O vascaíno, emocionado e também chorando, pedia ao delegado que chamasse o piloto para uma conversa. Os dois se abraçavam e trocavam beijos copiosamente enquanto imploravam pela presença do piloto. Diziam, enfaticamente, que estava tudo bem, que não iriam brigar, que a “situação” já estava resolvida, e toma-lhe mais abraço e beijo.

- Depois de alguns minutos o delegado tentou encerrar a questão dizendo que caso os dois não saíssem por bem teriam que sair algemados.

Novamente, o flamenguista disse não entender o que estava acontecendo. Gritou que estava pagando a passagem em 10 vezes igual na “casa Bahia” só para ver o "mengão" e chorou dizendo que por causa de uma briguinha de nada tudo estava perdido.

O vascaíno, agora mais que solidário, o abraçou e os dois saíram juntos, escoltados pela polícia. Enquanto saíam, o grupo de flamenguistas gritava o nome do amigo e dizia ... “Fica tranqüilo, é nóis”. O flamenguista erguia os braços e respondia “é nóis!! É nois!!”.

O avião partiu com 50 minutos de atraso e sem nenhum comentário sobre futebol.

O drama descrito fez com que eu gostasse ainda mais do Brasil pós-Lula. É claro que xinguei todas as gerações passadas e futuras de ambos os torcedores. Afinal, foram 50 minutos de atraso. Porém, aquele momento fez com que eu percebesse que a progressiva distribuição de renda que permite que pessoas mais pobres comprem suas primeiras passagens de avião pagando em 10 vezes para ver o “mengão” democratiza tudo: o avião, o aeroporto, a circulação nacional e até mesmo os conflitos entre torcidas de futebol. No avião, alguns torceram o nariz, outros riram, outros fizeram comentários sobre a “barbaridade” da situação, mas todos participaram intensamente deste drama que tinha o futebol como principal pano de fundo. É a “cara do Brasil”, pós-Lula, é claro!!!

domingo, 13 de maio de 2012

Os pobres e a escola


Sou antropólogo e ministro aulas de sociologia e antropologia da educação. Em ambas, procuro trabalhar para a construção do “olhar relativizador”.  Todos os meus alunos são incentivados a descrever situações abrindo mão de adjetivos e advérbios de intensidade. O objetivo é impedir que os escritores apresentem realidades para os leitores que existem apenas na cabeça de quem faz a narração. 

Para aprender a descrever, os estudantes precisam levar a lição de Durkheim às últimas consequências. É preciso abandonar “pré-noções” e “juízos-de-valor” buscando uma análise o mais neutra possível. Na sequência, os estudantes aprendem que um escritor experiente pode disfarçar todos os seus preconceitos em um texto descritivo abandonando, inclusive, quaisquer adjetivos e advérbios de intensidade. Neste momento eles percebem que as questões são mais complexas. 

A questão posta é a seguinte: para aprender a escrever é fundamental saber ler um certo tipo de leitura. Qual seja: uma leitura que busque abandonar as lentes que fazem com que vejamos a realidade com base em uma única e limitadora perspectiva. A base para o início do trabalho é abandonar a tentação de ler a vida como ela está posta em nossas cabeças e buscar a vida que está na cabeça dos outros, valorizando o “ponto de vista nativo” relacionado às situações analisadas. 

Quando utilizo estes exercícios em aulas relacionadas aos processos de segmentação presentes nos sistemas escolares provoco os estudantes pedindo que expliquem o baixo desempenho dos alunos em áreas de baixo nível sócio econômico. Peço que falem, apresentem sua visão pessoal, utilizem os autores já discutidos para pensar sobre a questão e busquem análises neutras. 

Há, nestas aulas, um fenômeno curioso. Em todas elas os “pobres” ou as “classes populares” são pensados como uma grande massa homogênea. Falas como “não dá pra esperar que uma criança pobre tenha o mesmo desempenho de uma criança de classe média”, “é necessário entender que as famílias pobres têm baixas expectativas educacionais”, “não podemos esquecer que o contexto em que as crianças são criadas influencia a relação que elas desenvolvem com a escola”, “os pobres acabam aceitando qualquer escola para os filhos” aparecem em todos os debates. 

De início, incentivo as falas, instigo debates e, curiosamente, os estudantes tendem a concordar que a relação que os mais pobres desenvolvem com a escola é uma relação de submissão aos desígnios da própria escola. Importante indicar que não trabalho somente com estudantes de classe média. Há, principalmente nas licenciaturas, número significativo de estudantes oriundos das classes populares. 

Depois desta tempestade de ideias, critico todas as falas e apresento os dados da pesquisa que estou realizando. O objetivo da investigação é mapear e analisar as justificativas de escolha e as estratégias de acesso utilizadas por pais e responsáveis que desejam ou precisam matricular os filhos no sistema municipal de educação do Rio de Janeiro. Neste momento, os estudantes descobrem que as famílias populares devem ser pensadas no plural. Há famílias com baixas expectativas educacionais que, de fato, aceitam os desígnios da escola. Porém, também existem famílias que conhecem e reconhecem a qualidade das melhores escolas da rede municipal e utilizam todas as estratégias presentes em seus campos de possibilidades para matricular os filhos nestas escolas. Há pais que buscam ajuda na burocracia municipal, que passam o ano inteiro visitando as escolas e acompanhando seus filhos, que buscam publicações sobre desempenho escolar e que, principalmente, incentivam seus filhos a dar o melhor de si para a escola. 

Depois que apresento os dados, os alunos pedem a palavra novamente e começam a contas dezenas de histórias de famílias populares que se esforçaram para conseguir vagas nas melhores escolas. Ao final destas aulas, alguns estudantes me procuram individualmente para contar suas histórias e o papel de seus pais. Já ouvi muitos relatos e todos indicam que se não fosse pela insistência de seus pais durante a educação básica, eles não teriam estudando em escolas publicas de qualidade e, como consequência, em sua visão, não estariam na UFRJ.

Estes exercícios permitem perceber a força de representações coletivas que associam pobreza material a baixo desempenho escolar e expectativas negativas relacionadas aos processos educacionais. Quando problematizamos estas classificações percebemos que os pobres são plurais e que também há, entre os pobres, alto desempenho e expectativas positivas sobre a escola e a capacidade de seus filhos. 

E você, conhece alguma historia de sucesso escolar nos meios populares?