O ex-presidente Lula fez, dia 21
de maio, um discurso que me levou a lembrar de uma situação vivida em um avião.
Quem indicou a fala do Lula foi minha esposa. Busquei o discurso no oráculo
moderno – google – e encontrei Lula dizendo que em seu governo os pobres
passaram a “andar” de avião; e completou: "fazer pobre andar de avião é
difícil". Concordo plenamente com ele não somente porque a observação mais
rotineira percebe a presença dos mais pobres nos aeroportos, mas porque as análises
de fluxo aéreo indicam a mesma coisa: os pobres estão “andando” muito de avião.
Os dados são sempre frios e é
possível saber que tantos por cento dos mais pobres passaram a voar. Para um
antropólogo os dados frios não são suficientes porque, seguindo Malinowski, é
necessário rechear o esqueleto com a carne e o sangue da vida social para que ele expresse a
realidade de maneira mais coerente.
Não sou pesquisador da área, mas
vivi um fato interessante, em 2009, em um vôo direto de São Luis do Maranhão
para o Rio de Janeiro, que serve para ilustrar o fenômeno para além das
estatísticas. Já contei esta história em dezenas de mesas de bar e em todas
elas o diagnóstico foi preciso: este é um retrato do Brasil de Lula. Vou contar
para vocês. Lá vai...
Fiz alguns concursos antes de
ingressar no magistério superior. O primeiro em que fui aprovado foi para a
Universidade Federal do Maranhão – UFMA. Na época, foi uma felicidade seguida
de um transtorno. Minha mulher estava fazendo mestrado aqui no Rio e dependia
da Biblioteca Nacional, o que a impedia de seguir comigo para São Luis. Fui sozinho
e passei a fazer a “ponte aérea” São Luis/Rio em todos os feriados nacionais.
Ela também fez algumas, mas o mundo manda que os homens corram atrás das
mulheres e não o contrário.
O vôo não era dos mais
agradáveis. Quatro horas seguidas, partindo de São Luis às duas horas da madrugada
e chegando ao Rio às seis horas da manhã. Valia a pena, mas seguir para o
aeroporto, embora poético, não era nenhuma delícia. Bom, em um destes finais de
semana aconteceria um jogo de futebol entre o Flamengo e o Vasco, um jogo de campeonato.
Minha visão preconceituosa me
obrigava a acreditar que ninguém, por mais fanático que fosse, iria pensar em
futebol às duas da madrugada em um avião apertado, ainda em solo. Eis que
entram oito homens, em fila indiana, sussurrando o hino do flamengo, balançando
uma bandeira e batendo com as mãos no teto do avião. Eu estava lendo e,
simultaneamente, cochilando. Pensei que estava sonhando, mas o sussurro foi
ficando mais alto conforme a “equipe” se aproximava de mim. Todos
uniformizados, cantavam o hino do flamengo, batiam com as mãos no teto e
falavam sobre o avião enquanto buscavam seus lugares. Meu “instinto”
antropológico despertou quando ouvi: “primeira vez de todo mundo junto”.
Entendi que todos estavam voando pela primeira vez e tinham escolhido o Rio de
Janeiro por causa do jogo do campeonato.
Fiquei pensando o quão
democrática era aquela cena e como representava o Brasil pós- Lula. Confesso
que só pensei assim até o começo do drama que se seguiu.
Estava tudo bem até que, não sei
por quais motivos, um dos flamenguistas decidiu provocar o sujeito que estava
sentado à sua frente. Começou com a tradicional brincadeira: “Ei bacalhau! Ei,
Bacalhau! Vem chupar... o restante é impróprio para o Blog”. Ocorre que o
sujeito da frente não gostou da brincadeira e pediu para parar.
Não satisfeito, o flamenguista
decidiu passar a mão na cabeça do vascaíno e dizer para ele: “fica calminho”.
Lembrem: tudo isso em um avião em solo às duas da madrugada!
O Vascaíno retirou, com
violência, a mão do flamenguista de sua cabeça. Ele pediu, aos berros, para o
flamenguista parar com aquilo.
Foi o suficiente para o irmão do
flamenguista comprar a briga, sair de seu lugar gritando que ninguém faria
aquilo com o irmão dele e “convidar” o vascaíno para uma luta no corredor do
avião. De fato, ele arrancou o vascaíno da poltrona e os dois começaram a
brigar.
Eu estava perto, bem perto dos
torcedores lutadores e vi todos os socos que foram trocados; também vi a
correria das aeromoças e ouvi os gritos assustados e atordoados dos
passageiros, alguns diretamente envolvidos no trabalho coletivo de separar a
briga.
A briga acabou e os passageiros
voltaram para seus lugares rapidamente, inclusive os brigões. Ocorre que em 10
minutos havia um delegado da polícia federal, acompanhado de dois policiais
para retirar os brigões do avião. O diálogo foi o seguinte:
- Olá, eu sou..., delegado da
polícia federal. Fui convocado pelo piloto da aeronave e gostaria que os
senhores me acompanhassem.
- O flamenguista respondeu com
uma pergunta: para onde?
- Para fora da aeronave.
- Que isso, amanhã é jogo do
mengão. Se eu não for nesse vôo já era.
- O vascaíno, solidário, disse:
“que isso, seu puliça (sic), já tá
tudo tranqüilo aqui, né não, irmão”.
- O flamenguista concordou de
pronto, começou a chorar, abraçou o vascaíno e implorou ao “seu puliça” que o
deixasse falar com o piloto. Ele acreditava piamente que poderia convencer o
piloto a deixá-lo no avião. O principal argumento era o jogo do mengão.
- O vascaíno, emocionado e também
chorando, pedia ao delegado que chamasse o piloto para uma conversa. Os dois se
abraçavam e trocavam beijos copiosamente enquanto imploravam pela presença do
piloto. Diziam, enfaticamente, que estava tudo bem, que não iriam brigar, que a
“situação” já estava resolvida, e toma-lhe mais abraço e beijo.
- Depois de alguns minutos o
delegado tentou encerrar a questão dizendo que caso os dois não saíssem por bem
teriam que sair algemados.
Novamente, o flamenguista disse
não entender o que estava acontecendo. Gritou que estava pagando a passagem em
10 vezes igual na “casa Bahia” só para ver o "mengão" e chorou dizendo que
por causa de uma briguinha de nada tudo estava perdido.
O vascaíno, agora mais que
solidário, o abraçou e os dois saíram juntos, escoltados pela polícia. Enquanto
saíam, o grupo de flamenguistas gritava o nome do amigo e dizia ... “Fica
tranqüilo, é nóis”. O flamenguista erguia os braços e respondia “é
nóis!! É nois!!”.
O avião partiu com 50 minutos de
atraso e sem nenhum comentário sobre futebol.
O drama descrito fez com que eu
gostasse ainda mais do Brasil pós-Lula. É claro que xinguei todas as gerações
passadas e futuras de ambos os torcedores. Afinal, foram 50 minutos de atraso.
Porém, aquele momento fez com que eu percebesse que a progressiva distribuição
de renda que permite que pessoas mais pobres comprem suas primeiras passagens
de avião pagando em 10 vezes para ver o “mengão” democratiza tudo: o
avião, o aeroporto, a circulação nacional e até mesmo os conflitos entre
torcidas de futebol. No avião, alguns torceram o nariz, outros riram, outros
fizeram comentários sobre a “barbaridade” da situação, mas todos participaram
intensamente deste drama que tinha o futebol como principal pano de fundo. É a
“cara do Brasil”, pós-Lula, é claro!!!