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Sou um antropólogo brasileiro especializado em temas educacionais. Meus trabalhos focalizam as relações existentes entre a educação escolar e outras esferas da vida social. Atualmente, desenvolvo pesquisas sobre estratégias familiares e projetos de escolarização nas camadas populares das cidades do Rio de Janeiro e Petrópolis, ambas no Brasil. A abordagem inclui reflexões sobre a educação básica e o ensino superior. O debate sobre a construção social das juventudes é privilegiado porque permite interpretações refinadas sobre as relações entre educação escolar e expectativas de futuro. Trabalho no Departamento de Fundamentos da Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro-UFRJ onde ensino antropologia e sociologia da educação, além de orientar estudantes interessados no debate entre ciências sociais e educação.

quinta-feira, 17 de abril de 2025

A catapulta e o elevador: notas sobre as masculinidades em construção

A série “Adolescência”, criada por Jack Thorne e Stephen Graham e dirigida por Philip Barantini  está na crista da onda dos debates sobre meninos, meninas, masculinidades, violências, interações juvenis e tudo o mais que toca nas intelectualidades ao pensarem as questões geracionais. Não irei comentar a série porque não quero dar nenhum spoiler. Eu assisti, achei muito boa, mas não achei ótima. As minhas visões sobre a produção divergem de todos os amigos e amigas que também assistiram, o que é muito legal. Estou citando a série porque ela, e todas as conversas que dela derivaram, me remeteram ao trabalho de campo que realizei para a minha dissertação de mestrado, nos idos do início deste século.

Naquele momento, vivi uma imersão etnográfica em espaços escolares nos quais havia projetos de orientação sexual. Observei, entrevistei professores e adolescentes, analisei a legislação pertinente. Havia uma efervescência relacionada às possibilidades que a escola teria para desenvolver discussões sobre o corpo, lido como matriz da sexualidade, relações de gênero e prevenção a Doenças Sexualmente Transmissíveis (hoje com nova nomenclatura: infecções sexualmente transmissíveis).

Como em todo bom trabalho de campo, ouvi militantes, pessoas favoráveis, contrárias, entusiastas e li tudo o que encontrei disponível em jornais e revistas (a internet ainda era muito incipiente) sobre a temática. Este preâmbulo todo serve apenas para contar a história que a série me lembrou.

Em conversa com um professor que era indiferente aos projetos, ele me disse que era muito difícil falar destas questões com aqueles meninos porque eles eram todos “catapultas”. De início, não entendi a metáfora e ele percebeu. Daí explicou que os meninos eram “catapultas”. Eu, que tinha à época, 28 anos era “meio catapulta”; e ele, o professor, já era “elevador”. Quando comecei a entender a metáfora, ele disse: “tô falando da p...oca, meu amigo”. A p...oca destes meninos é igual a uma catapulta. Basta ouvir a palavra sexo, cheirar uma menina, ver uma fotografia, que o negócio sobe na hora. Você deve ser meio assim. Eu já sou elevador. Ele sobe, mas vai de andar em andar, e se alguém apertar o botão térreo, desce bem mais rápido.

Depois de apresentar a sua metáfora para a sexualidade masculina, o professor caiu na gargalhada e disse que, por isso, não dava muita bola para os projetos de orientação sexual. Os meninos só pensavam nisso o tempo todo e, consequentemente, ao ouvirem a palavra “sexual” já não prestariam atenção em mais nada. A dissertação que escrevi e a tese relativizam esta visão do professor e demonstram que, ao contrário, meninos e meninas tinham muitas questões sobre o despertar da sexualidade, relacionamentos afetivos, amores, afetos, entre outras. Quem tiver interesse pode ler os dois trabalhos ou os artigos deles derivados, disponíveis na internet.

A visão daquele professor é “boa para pensar”, no sentido que Lévi-Strauss atribui a esta afirmação, em todos os reducionismos e silenciamentos relacionados à masculinidade na sua vertente sexual. Há uma leitura falocêntrica dos meninos – e dos homens – alimentada por esta e muitas outras metáforas repetidamente utilizadas por homens adultos nos diálogos que travam entre si e com os mais jovens. Ciente disso, uma das professoras observadas fazia um exercício no qual pedia que meninos e meninas escrevessem livremente sobre os nomes atribuídos aos órgãos sexuais. Daí aparecia um festival de palavras no qual o órgão masculino era apresentado com nomes que remetiam frequentemente à violência, tais como: pau, pica, poderoso, cabo de vassoura, porrete, tigrão. Já o órgão feminino aparecia como pipoquinha, tchutchuquinha, princesinha. Enquanto um conotava força e violência, o outro, no diminutivo, não remetia a nenhum destes sentidos.

Estas metáforas dizem muito sobre a forma como lidamos com a sexualidade masculina. Ela aparece sempre conectada com força, violência, virilidade e com a responsabilidade de estar, digamos, “a postos” o tempo todo. Homens adultos contam histórias para os homens mais novos, nas quais eles, os adultos, estão sempre dispostos, disponíveis para as mulheres, verdadeiros fenômenos do prazer, prontos para performar (este é um termo da moda) o macho viril com qualquer mulher que apareça na frente deles. Os meninos acreditam nisso porque, afinal, são homens adultos e referências. Daí todos estes elementos da cultura se reproduzem. Não posso afirmar isso diretamente, mas em termos hipotéticos, acho difícil imaginar o meu entrevistado se apresentando para os meninos mais jovens como um “elevador”. Se o fizesse, seria uma exceção porque, nas dinâmicas interacionais entre homens e meninos, eles – os homens – são sempre uns colossos, enquanto os pobres meninos devem torcer para, quem sabe um dia, virarem colossos também.

“Adolescência” fala de violências entre meninos e meninas, que têm um desfecho trágico. É ficção, mas a realidade está repleta de finais semelhantes com meninos e homens que cometem atrocidades causadas por todas as configurações da misoginia que os afetam. Problematizar as visões sobre as sexualidades masculinas, criticar todo o falocentrismo que permite metáforas como a da “catapulta” e do “elevador” pode ajudar a reduzir as tensões que atingem, em especial, os meninos. A misoginia, como toda forma de ódio, tem o sentido de eliminação do outro, mas ela revela muito para além disso: medo, insegurança, raiva de si próprio e um sentimento de inadequação a ideais que só existem no plano das representações sobre as masculinidades. Estas representações são reproduzidas ad nauseam por homens adultos que aterrorizam os meninos cobrando por performances que eles mesmos não têm, nunca tiveram, e nem deveriam ter. Elas fazem com que os meninos acreditem que as meninas -  e as mulheres - esperam estas performances e repelem quem não as têm. O circuito é muito complexo e repleto de violências dolorosas. Mas como em todo circuito traumático, falar pode ajudar bastante. Os homens adultos podem contribuir diretamente, abrindo mão de contar as suas experiências sexuais como se fossem epopeias. No final, todo mundo ganha com isso.