No dia 27 de maio de 2024 participei da banca de
qualificação da Beatriz Barral, orientanda da Mariane Koslinski. Trata-se de um
trabalho sobre escolas do campo, realizado em um município do interior do
Estado de Minas Gerais. A qualificação foi ótima. É um trabalho com foco
específico na discussão sobre as turmas miltisseriadas, que revela uma série de
questões relacionadas às escolas do campo.
Para além do trabalho acadêmico em
termos estritos, a participação na banca trouxe dezenas de memórias da minha
infância. Eu nasci e cresci num espaço meio que fronteiriço, entre o urbano e o
rural, além de ter passado boa parte das minhas férias escolares na roça. Campo,
campesinato, campesino são categorias analíticas. Roça é uma palavra afetiva.
Lá na minha roça, quando eu era
menino, detestava ser chamado de moleque. Não sei bem por quais motivos, mas eu
achava o termo depreciativo. Podiam me chamar de qualquer coisa: garoto,
menino, grandão, magrelo. Nenhum destes termos me incomodava. Mas quando alguém
me chamava de moleque eu tomava como uma afronta terrível.
Dona Alzira só me chamava de
moleque. Que ódio que eu tinha daquilo. Ela era uma senhora muito velha, na
minha percepção de criança. Com os olhares de hoje, eu apostaria nuns 60 anos
ou até menos. Mas para mim, naquele momento, ela era velhíssima, o que colocava
um problema central. Eu fui educado para respeitar os mais velhos e, no caso de
qualquer entrevero com um deles, me calar e simplesmente contar para a minha
mãe ou o meu pai. Daí que quando Dona Alzira dizia: “Oi, moleque!” eu apenas
respondia: “Bom dia, Dona Alzira!” e ficava recitando respostas desaforadas,
incluindo vários palavrões, que nunca saíam da minha boca. Minha mãe nem
ligava. Achava até engraçada a minha raiva com a palavra e repetia ad
nausean: “deixa a Dona Alzira quieta, menino”.
Ela só ficou brava um dia no qual
a minha raiva me fez cometer um tremendo equívoco. Minha mãe pediu que eu fosse
ao bar do Tarcísio, era uma espécie de venda da região, para comprar algumas
coisas para a casa. Para ir ao bar do Tarcísio, eu precisava passar em frente à
casa da Dona Alzira. Nestes casos, eu passava sempre correndo, fugindo dos
cumprimentos desaforados. Eis que nesse dia, no meio da corrida, eu escuto: “oh
moleque. Você tá indo no bar do Tarcísio?”. “Sim senhora, Dona Alzira”. E lá
veio a Dona Alzira com uma lista de compras. “então traz essas coisinhas para
mim”.
Olhei para aquela lista, mais a
lista da minha mãe e pensei: vai dar um montão de bolsas, um peso danado. Mas lá
fui eu, ruminando a raiva. Comprei tudo, entreguei a parte da Dona Alzira e
segui para casa.
Ocorre que quando minha mãe foi
conferir as compras ela começou a perguntar onde estavam as outras coisas. Quais
coisas? As coisas que eu mandei você comprar.
Arregalei os olhos e entendi
tudo. Eu tinha misturado todas as compras e Dona Alzira havia ficado com parte
das compras da minha mãe. Foi um alvoroço. Tomei uma bronca danada e minha mãe
passou a viver um tremendo dilema moral. Pedir de volta as compras à Dona Alzira
poderia ser visto como uma acusação. Não pedir, causaria um prejuízo enorme
porque ela teria que comprar tudo de novo. Dona Alzira era velha. Obviamente não
agiria de má fé ficando com as coisas da minha mãe, mas poderia deixar tudo lá
sem nem perceber.
No final das contas, decidimos
que iríamos deixar para lá. Minha mãe entendeu que não valeria a pena correr o
risco de criar uma “confusão com os vizinhos”. Até porque ela não tinha certeza
se, de fato, eu tinha entregado as coisas dela para a Dona Alzira ou se eu
simplesmente tinha esquecido ou perdido. Na roça, prezamos muito as relações
que temos com os vizinhos. E lá fui eu
de novo ao Bar do Tarcísio para comprar o que faltava. Mas no meio do caminho
eu ouvi “oh, moleque, isso aqui que você me entregou não é meu. Deve ser da tua
mãe. Leva embora”. Fiquei tão aliviado que nem percebi que eu tinha, novamente,
sido chamado de moleque.
Dona Alzira morava em um lugar em
frente à um espaço amplo, de terra batida, ótimo para jogar bola. Eu e meus
amigos adorávamos jogar bola lá, e ela detestava. Nossa algazarra a incomodava,
ela nos xingava toda vez que a bola caia no terreno dela e ameaçava furar a
bola. “Pelo amor de Deus, Dona Alzira. Tenha piedade”. Colocar Deus na história
sempre funcionava. Ela xingava e jogava a bola de volta, sem furar, e nós
seguíamos com o futebol.
Certo dia, eu estava jogando
descalço e numa dividida pisei em uma ponta de pedra com o calcanhar. Doeu
muito, parei de jogar por uns minutos e logo retornei para a pelada. Quando cheguei
em casa eu estava mancando. Minha mãe olhou, perguntou o que tinha acontecido,
apertou meu pé inteiro e achou que não seria nada. Mesmo assim me deu uma bronca
por estar jogando descalço.
No dia seguinte eu mal conseguia
colocar o pé no chão. Como não queria mais uma bronca, calcei o tênis da escola
e fui andando na ponta do pé, disfarçando a dor. No final daquele dia já não
dava mais. Estava doendo muito. Cheguei em casa, minha mãe fez compressas com
água quente, sal e vinagre. Água quente, sal e vinagre são um tipo de poção
mágica para entorses, estiramentos e outros. Sempre que eu me machucava, e isso
acontecia com enorme frequência, dá-lhe água, sal e vinagre. Mas desta vez não
adiantou nada.
No terceiro dia lá estávamos no
pronto socorro. Eu, arrastado pela minha mãe, olhando para a cara de um médico simpático
que disse: “ih, tá feio esse negócio. Tem que ver se não pegou no osso”.
Congelei totalmente naquele momento. Eu não sabia o que era “pegar no osso”,
mas imaginei que fosse terrível. Saí de lá com uma lista de remédios. Tomei
tudo e nada adiantou. Neste momento, meu calcanhar estava inchado e visivelmente
inflamado.
Voltamos ao médico, que disse: de
fato, os medicamentos não deram conta. Vamos dar uma injeção nele e vou passar
outras. Eu odiava injeções e tomei muitas e muitas em várias situações. Parecia
que tudo só se resolvia com uma bendita injeção. Tomei e saí de lá com a receita
para mais uma, dali a sete dias.
Quando estávamos voltando para
casa, escuto a voz da Dona Alzira, dirigindo-se à minha mãe, que me arrastava enquanto
eu praticamente pulava com um pé só: “Ôpa. O que foi com o moleque?”. Uma dor
danada e aquela voz me chamando de moleque de novo era de matar.
Minha mãe aproveitou para
descansar um pouco e contou a história toda. Daí dona Alzira disse: “me dá esse
pé aqui. Vou resolver isso”. Não entendi bulhufas. Se nem os remédios
resolveram, Dona Alzira iria resolver de que forma?
Ela pegou meu pé, mexeu nele para
lá e para cá, desenhou com o polegar alguns símbolos sagrados de religiões
ancestrais e foi para dentro da casa. Voltou de lá com um pedaço de fumo de
rolo. Para quem não sabe o que é fumo de rolo, são folhas de tabaco enroladas
de forma que ficam parecendo uma corda. Quem faz uso, vai cortando os
pedacinhos para fazer cigarros de palha ou então mascar. No caso de Dona Alzira,
ela usava para fumar cachimbo.
Dona Alzira entregou o pedaço de
fumo para a minha mãe e disse: quando chegar em casa, corta o suficiente para cobrir
o calcanhar dele todinho, esquenta com um pouquinho de azeite, coloca no pé e
enrola uma fralda do menino pequeno (meu irmão caçula) no pé dele. Tem que ser
fralda para poder respirar. Eram fraldas de pano, claro. Deixa o dia inteiro e
troca à noite para dormir. É só fazer isso que vai ficar bom.
Dona Alzira tinha benzido o meu
pé. Os símbolos sagrados de religiões ancestrais que ela desenhou com o polegar
no meu pé diziam muita coisa. Eu e minha mãe não sabíamos exatamente do que se
tratava, mas era evidente que fora uma benzeção.
Eu sei que no dia seguinte, pela
manhã, eu já colocava o pé no chão e cinco dias depois estava caminhando quase
sem dor. Obviamente não dá para saber se foi a injeção, a benzeção, o fumo de
rolo, a eficácia simbólica do cuidado da Dona Alzira comigo ou tudo isso junto.
No final das contas, eu e minha mãe
preferimos atribuir a cura à Dona Alzira. Voltamos lá, eu mostrei, todo
orgulhoso, o pé curado e ela me disse: “tá vendo, moleque, eu te falei que iria
ficar bom”.
Desta vez, nem liguei de ser
chamado de moleque. Era só uma forma carinhosa de me chamar, tão carinhosa
quanto o cuidado que ela teve comigo ao me benzer. Desde então ela podia me
chamar de moleque sem causar raiva, mas só ela.