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Sou um antropólogo brasileiro especializado em temas educacionais. Meus trabalhos focalizam as relações existentes entre a educação escolar e outras esferas da vida social. Atualmente, desenvolvo pesquisas sobre estratégias familiares e projetos de escolarização nas camadas populares das cidades do Rio de Janeiro e Petrópolis, ambas no Brasil. A abordagem inclui reflexões sobre a educação básica e o ensino superior. O debate sobre a construção social das juventudes é privilegiado porque permite interpretações refinadas sobre as relações entre educação escolar e expectativas de futuro. Trabalho no Departamento de Fundamentos da Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro-UFRJ onde ensino antropologia e sociologia da educação, além de orientar estudantes interessados no debate entre ciências sociais e educação.

terça-feira, 28 de maio de 2024

Dona Alzira, o moleque e o fumo de rolo

No dia 27 de maio de 2024 participei da banca de qualificação da Beatriz Barral, orientanda da Mariane Koslinski. Trata-se de um trabalho sobre escolas do campo, realizado em um município do interior do Estado de Minas Gerais. A qualificação foi ótima. É um trabalho com foco específico na discussão sobre as turmas miltisseriadas, que revela uma série de questões relacionadas às escolas do campo.

Para além do trabalho acadêmico em termos estritos, a participação na banca trouxe dezenas de memórias da minha infância. Eu nasci e cresci num espaço meio que fronteiriço, entre o urbano e o rural, além de ter passado boa parte das minhas férias escolares na roça. Campo, campesinato, campesino são categorias analíticas. Roça é uma palavra afetiva.

Lá na minha roça, quando eu era menino, detestava ser chamado de moleque. Não sei bem por quais motivos, mas eu achava o termo depreciativo. Podiam me chamar de qualquer coisa: garoto, menino, grandão, magrelo. Nenhum destes termos me incomodava. Mas quando alguém me chamava de moleque eu tomava como uma afronta terrível.

Dona Alzira só me chamava de moleque. Que ódio que eu tinha daquilo. Ela era uma senhora muito velha, na minha percepção de criança. Com os olhares de hoje, eu apostaria nuns 60 anos ou até menos. Mas para mim, naquele momento, ela era velhíssima, o que colocava um problema central. Eu fui educado para respeitar os mais velhos e, no caso de qualquer entrevero com um deles, me calar e simplesmente contar para a minha mãe ou o meu pai. Daí que quando Dona Alzira dizia: “Oi, moleque!” eu apenas respondia: “Bom dia, Dona Alzira!” e ficava recitando respostas desaforadas, incluindo vários palavrões, que nunca saíam da minha boca. Minha mãe nem ligava. Achava até engraçada a minha raiva com a palavra e repetia ad nausean: “deixa a Dona Alzira quieta, menino”.

Ela só ficou brava um dia no qual a minha raiva me fez cometer um tremendo equívoco. Minha mãe pediu que eu fosse ao bar do Tarcísio, era uma espécie de venda da região, para comprar algumas coisas para a casa. Para ir ao bar do Tarcísio, eu precisava passar em frente à casa da Dona Alzira. Nestes casos, eu passava sempre correndo, fugindo dos cumprimentos desaforados. Eis que nesse dia, no meio da corrida, eu escuto: “oh moleque. Você tá indo no bar do Tarcísio?”. “Sim senhora, Dona Alzira”. E lá veio a Dona Alzira com uma lista de compras. “então traz essas coisinhas para mim”.

Olhei para aquela lista, mais a lista da minha mãe e pensei: vai dar um montão de bolsas, um peso danado. Mas lá fui eu, ruminando a raiva. Comprei tudo, entreguei a parte da Dona Alzira e segui para casa.

Ocorre que quando minha mãe foi conferir as compras ela começou a perguntar onde estavam as outras coisas. Quais coisas?  As coisas que eu mandei você comprar.

Arregalei os olhos e entendi tudo. Eu tinha misturado todas as compras e Dona Alzira havia ficado com parte das compras da minha mãe. Foi um alvoroço. Tomei uma bronca danada e minha mãe passou a viver um tremendo dilema moral. Pedir de volta as compras à Dona Alzira poderia ser visto como uma acusação. Não pedir, causaria um prejuízo enorme porque ela teria que comprar tudo de novo. Dona Alzira era velha. Obviamente não agiria de má fé ficando com as coisas da minha mãe, mas poderia deixar tudo lá sem nem perceber.

No final das contas, decidimos que iríamos deixar para lá. Minha mãe entendeu que não valeria a pena correr o risco de criar uma “confusão com os vizinhos”. Até porque ela não tinha certeza se, de fato, eu tinha entregado as coisas dela para a Dona Alzira ou se eu simplesmente tinha esquecido ou perdido. Na roça, prezamos muito as relações que temos com os vizinhos.  E lá fui eu de novo ao Bar do Tarcísio para comprar o que faltava. Mas no meio do caminho eu ouvi “oh, moleque, isso aqui que você me entregou não é meu. Deve ser da tua mãe. Leva embora”. Fiquei tão aliviado que nem percebi que eu tinha, novamente, sido chamado de moleque.

Dona Alzira morava em um lugar em frente à um espaço amplo, de terra batida, ótimo para jogar bola. Eu e meus amigos adorávamos jogar bola lá, e ela detestava. Nossa algazarra a incomodava, ela nos xingava toda vez que a bola caia no terreno dela e ameaçava furar a bola. “Pelo amor de Deus, Dona Alzira. Tenha piedade”. Colocar Deus na história sempre funcionava. Ela xingava e jogava a bola de volta, sem furar, e nós seguíamos com o futebol.

Certo dia, eu estava jogando descalço e numa dividida pisei em uma ponta de pedra com o calcanhar. Doeu muito, parei de jogar por uns minutos e logo retornei para a pelada. Quando cheguei em casa eu estava mancando. Minha mãe olhou, perguntou o que tinha acontecido, apertou meu pé inteiro e achou que não seria nada. Mesmo assim me deu uma bronca por estar jogando descalço.

No dia seguinte eu mal conseguia colocar o pé no chão. Como não queria mais uma bronca, calcei o tênis da escola e fui andando na ponta do pé, disfarçando a dor. No final daquele dia já não dava mais. Estava doendo muito. Cheguei em casa, minha mãe fez compressas com água quente, sal e vinagre. Água quente, sal e vinagre são um tipo de poção mágica para entorses, estiramentos e outros. Sempre que eu me machucava, e isso acontecia com enorme frequência, dá-lhe água, sal e vinagre. Mas desta vez não adiantou nada.

No terceiro dia lá estávamos no pronto socorro. Eu, arrastado pela minha mãe, olhando para a cara de um médico simpático que disse: “ih, tá feio esse negócio. Tem que ver se não pegou no osso”. Congelei totalmente naquele momento. Eu não sabia o que era “pegar no osso”, mas imaginei que fosse terrível. Saí de lá com uma lista de remédios. Tomei tudo e nada adiantou. Neste momento, meu calcanhar estava inchado e visivelmente inflamado.

Voltamos ao médico, que disse: de fato, os medicamentos não deram conta. Vamos dar uma injeção nele e vou passar outras. Eu odiava injeções e tomei muitas e muitas em várias situações. Parecia que tudo só se resolvia com uma bendita injeção. Tomei e saí de lá com a receita para mais uma, dali a sete dias.

Quando estávamos voltando para casa, escuto a voz da Dona Alzira, dirigindo-se à minha mãe, que me arrastava enquanto eu praticamente pulava com um pé só: “Ôpa. O que foi com o moleque?”. Uma dor danada e aquela voz me chamando de moleque de novo era de matar.

Minha mãe aproveitou para descansar um pouco e contou a história toda. Daí dona Alzira disse: “me dá esse pé aqui. Vou resolver isso”. Não entendi bulhufas. Se nem os remédios resolveram, Dona Alzira iria resolver de que forma?

Ela pegou meu pé, mexeu nele para lá e para cá, desenhou com o polegar alguns símbolos sagrados de religiões ancestrais e foi para dentro da casa. Voltou de lá com um pedaço de fumo de rolo. Para quem não sabe o que é fumo de rolo, são folhas de tabaco enroladas de forma que ficam parecendo uma corda. Quem faz uso, vai cortando os pedacinhos para fazer cigarros de palha ou então mascar. No caso de Dona Alzira, ela usava para fumar cachimbo.

Dona Alzira entregou o pedaço de fumo para a minha mãe e disse: quando chegar em casa, corta o suficiente para cobrir o calcanhar dele todinho, esquenta com um pouquinho de azeite, coloca no pé e enrola uma fralda do menino pequeno (meu irmão caçula) no pé dele. Tem que ser fralda para poder respirar. Eram fraldas de pano, claro. Deixa o dia inteiro e troca à noite para dormir. É só fazer isso que vai ficar bom.

Dona Alzira tinha benzido o meu pé. Os símbolos sagrados de religiões ancestrais que ela desenhou com o polegar no meu pé diziam muita coisa. Eu e minha mãe não sabíamos exatamente do que se tratava, mas era evidente que fora uma benzeção.

Eu sei que no dia seguinte, pela manhã, eu já colocava o pé no chão e cinco dias depois estava caminhando quase sem dor. Obviamente não dá para saber se foi a injeção, a benzeção, o fumo de rolo, a eficácia simbólica do cuidado da Dona Alzira comigo ou tudo isso junto.

No final das contas, eu e minha mãe preferimos atribuir a cura à Dona Alzira. Voltamos lá, eu mostrei, todo orgulhoso, o pé curado e ela me disse: “tá vendo, moleque, eu te falei que iria ficar bom”.

Desta vez, nem liguei de ser chamado de moleque. Era só uma forma carinhosa de me chamar, tão carinhosa quanto o cuidado que ela teve comigo ao me benzer. Desde então ela podia me chamar de moleque sem causar raiva, mas só ela.