A sociabilidade masculina
durante infância e a adolescência tem algumas questões no mínimo curiosas. É interessante
observar como os meninos resolvem seus conflitos, afirmam suas masculinidades e
desenvolvem gramáticas interativas recheadas de violências de todos os tipos.
O “vamo tampá na porrada,
moleque?!” é um misto de interrogação e exclamação, usado em contextos nos
quais a conversa dá lugar a um tipo de relação jocosa com a violência física. Tampar
na porrada significa sair no braço, brigar para resolver uma querela causada
por divergências sobre qualquer coisa: futebol, meninas, familiares, escolhas
estéticas, tanto faz. Mas também ocorre sem que haja nenhuma querela evidente. Algo
do tipo, já que não temos nada para fazer “vamo tampá na porrada, moleque?!”.
Esse tipo de relação é
curioso porque à primeira vista é difícil saber se é uma briga de fato ou de brincadeira.
Observar os recreios nas escolas é um belo exercício para aprender a diferenciar
um e outro caso, e decifrar todos os códigos envolvidos. O mais difícil de
entender é que o “vamo tampá na porrada, moleque?!” quase nunca “é a vera”. Se for,
a sequência da afirmativa é “e vai ser a vera”. Nesse caso, não se trata de uma
relação jocosa com a violência física. É violência mesmo, briga de fato.
Em ambos os cenários os
meninos trocam socos, pontapés, rolam no chão, mas no primeiro deles todas essas
ações são performatizadas. São socos e pontapés por vezes seguidos de
sonoplastias que imitam prestigiosamente verdadeiros golpes, mas com uma
quantidade de força que promove o toque, mas sem a possibilidade de machucar o
oponente. Nos agarrões, acontece algo parecido. Gravatas, mata-leões,
imobilizações são usadas para submeter o oponente e vencer a briga.
Todas essas ações têm códigos
muito claros para quem as pratica. Se, por exemplo, em um mata-leão o menino
subjugado diz: “tá machucando”, a “porrada” acaba na hora para não correr o
risco de “ficar a vera”. Se isso ocorre, o grupo que observa intervém; todo
mundo “tampa na porrada” e logo estão rindo e brincando juntos novamente.
Os motivos para “tampá na
porrada” são mais ou menos legítimos dependendo do grau de agressão a certos bastiões
da masculinidade. Mexer com a irmã de alguém, por exemplo, está no topo dos
motivos possíveis. Nesses casos, a jocosidade começa com um “elogio” à irmã de
alguém. Algo do tipo: “vi tua irmãzinha ontem. Tá crescendo. Muito gostosinha”.
A sequência lógica é: “moleque, vamos tampa na porrada?!”, ao que oponente responde,
por exemplo: “vai alimentando ai para mim”, que é o gatilho para tamparem na
porrada.
As mães também são figuras
sacrossantas. Mexer com a mãe de alguém gera porrada imediatamente, mas nesses
casos tende a ser a vera e o grupo todo participa. Com as irmãs um pouco menos,
primas vem na sequência, já com as amigas ocorrem variações diversas, desde tamparem na porrada imediatamente até ficarem horas citando as amigas uns dos
outros como possíveis meninas que eles irão comer. Nesse caso, só tampam na
porrada se algum deles estiver enamorado ou apaixonado. Daí é porrada na certa
e pode até ser a vera.
O mais curioso desse
fenômeno é que os conflitos esgotam-se na porrada, inclusive quando é “a vera”.
Depois disso eles seguem juntos como se nada tivesse acontecido.
Eu, quando pequeno, “tampei
na porrada” várias vezes, com praticamente todos os meus amigos. Naquele momento,
via como algo natural. Ser menino era “tampar na porrada”, defender minha irmã,
minha mãe, minhas primas de qualquer ataque jocoso feito pelos outros moleques.
Porrada “a vera” foram poucas, mas ocorreram também e nunca havia
ressentimentos posteriores ao ato em si. Eu também “tampava na porrada” com meu
irmão caçula o tempo todo. Ele adorava “tomar umas porradas” e me provocava até que eu cedia. Hoje ele pode me provocar a vontade porque quem
tomaria porrada seria eu, mas quando ele era pequenininho e até a adolescência era
a nossa principal brincadeira.
Depois de velho,
antropólogo em formação, fiquei muito surpreso ao ver o mesmo fenômeno nas
escolas que observei. Os moleques tampavam na porrada o tempo todo e usavam
exatamente os mesmos códigos de etiqueta da porrada.
Há dezenas de
interpretações plausíveis sobre esse fenômeno. É possível argumentar que
trata-se de uma cultura masculina de entendimento dos corpos – do eu e do outro;
que é uma forma de referendar masculinidades hegemônicas bem ao estilo
mediterrâneo; que as “porradas” fundamentam visões de mundo com claras divisões
de gênero nas quais os homens têm que proteger as mulheres que amam; que as “porradas”
cimentam laços sociais e afetivos entre os meninos porque “não dá pra confiar
em alguém com quem você nunca tampou na porrada”. Enfim, são muitas interpretações
possíveis, inclusive várias outras para além dessas.
Estou escrevendo esse
post porque eu realmente achava que com a progressiva relativização das fronteiras
de gênero o fenômeno do “tampa na porrada” cairia em desuso. Ocorre que outro
dia, na pracinha aqui perto de casa, observei dois meninos caminhando com seus
skates na mão. Pareciam irmãos, mas não sei se eram. O menor, do nada, deu um
chute no skate do maior, que caiu no chão. Imediatamente, o maior disse: “Vamo
tampá na porrada, moleque?!”, deu-lhe uma gravata e performatizou vários socos
no estômago do menorzinho.
Ali pertinho, duas
velhinhas se entreolharam. Uma gritou: “para com isso, menino. Vai machucar”. E
a outra respondeu: “que nada, tão só brincando. É coisa de menino”.
Não sei se hoje o “vamo
tampá na porrada” é só coisa de menino. Pode ser que as meninas também estejam
tampando na porrada por aí; mas parece-me que entre meninos, adolescentes e
também entre homens adultos, que foram meninos e por vezes o repetem, inclusive
com seus filhos, ele permanece como um dos rituais de masculinidade mais
constantes.
Observando tudo isso,
penso que há algo muito interessante para se pensar nesse ritual. A “porrada”,
nesses casos, só promove a paz. Quando ela acaba, acabou a guerra. Daí ficam
duas questões. Por que os meninos precisam tanto desse diálogo violento para se
afirmarem como homens? E quais são os elementos que encerram o conflito assim
que acabaram de “tampar na porrada”? São boas questões, mas em certa medida
extrapolam os limites da abordagem antropológica. Deixo-as aqui para pensarmos
juntos.