Eu passei parte da madrugada de hoje assistindo ao novo filme do Charlie Kaufman “Estou pensando em acabar com tudo”. O roteiro do filme é baseado no livro de mesmo título, escrito por Iain Reid, que conta a história de Lucy, uma jovem que pensa em terminar um relacionamento afetivo depois de 7 semanas de seu início.
Tudo começa com uma
viagem à casa dos pais de Jake, seu namorado, e já durante o trajeto todas as questões
internas vividas pela personagem aparecem em seus pensamentos, seus olhares
para Jake, suas ações e nos diálogos entre o casal. Jake parece não entender
bem o que está ocorrendo ali naquele carro, talvez por estar mais preocupado
com o encontro entre ele, sua nova namorada e seus pais. São dois jovens juntos
e solitários em suas questões, dentro de um mesmo carro, seguindo não sabem
muito bem para qual lugar. Ela porque não conhece nem o lugar e nem os pais. Ele
porque embora conheça tudo, não faz a menor ideia da relação que surgirá
deste encontro.
Há um conjunto de
questões filosóficas e existenciais presentes no filme, mas a que me parece mais
forte é a temática da finitude das relações humanas. Não somente porque ela
está presente desde o título, mas porque ela surge em dezenas de cenas,
envolvendo todos os personagens numa trama que ocorre de forma não linear.
A trama não linear e o debate
sobre a finitude são um dos paradoxos mais interessantes do filme. Ao mesmo em tempo
que o roteiro subverte nossas visões sobre presente, passado e futuro, aponta
como princípio da finitude o fato de os homens nunca conseguirem viver no
presente porque guardam memórias do passado e expectativas de futuro.
É claro que Kaufman
comete um exagero nada antropológico quando propõe esse princípio porque há sim
sociedades em que nosso modelo linear de tempo não faz o menor sentido, e não
são poucas. Não vou entrar nesse debate aqui porque o texto deixaria de ser um
post. Um passeio pelo debate sobre tempo e espaço na antropologia ajuda a
relativizar tal postulado.
Para aqueles que vivem
em uma temporalidade linear e ao mesmo tempo reconhecem as limitações dessa
temporalidade o filme é um primor. Qual é o tempo certo de terminar uma
relação? E o que acontece com ela quando ela termina? O que há de eu e de outro
nas decisões relacionadas ao término de uma relação? E quando esse término é
imponderável?
O filme trata de todas
essas questões. A morte aparece como um imponderável. Quando ela surge, as
relações entre os mortos necessariamente se transformam. Alguns diriam que
acabam, mas eu particularmente não concordo com isso. Nossos mortos fazem parte
de nossas vidas e, por vezes, chegam a pautar a agenda de nossas existências. Mas
eles ganham outro estatuto, gerado pelas memórias que escolhemos para
guardar. Há mortos amados e mortos odiados e esses sentimentos variam mais na
forma do que no conteúdo. Quando os amamos ou os odiamos queremos no fundo
permanecer em relação com eles.
Mas a finitude também
aparece no filme no relacionamento entre os vivos. Viver um relacionamento
afetivo envolve, dentre muitas outras, duas questões centrais: a experiência da
alteridade e a empatia a ela relacionada. Como ser eu sendo o outro
simultaneamente? Essas questões se colocam para todos os casais, com roupagens as mais diversas, e também para outros relacionamentos como pais e filhos,
amigos, irmãos. O grande dilema inicial de Lucy é exatamente esse. Ela estava
começando um relacionamento com Jake e não sabia se desejava continuar. É claro
que ela também não sabia se ele queria ou não, mas a ação de levá-la à casa dos
pais dele indicava que sim, e ela questionava inclusive a noção de justiça
envolvida naquela viagem. Seria justo ir à casa dos pais do Jake mesmo pensando
em acabar com a relação?
A sequência do filme torna
essas questões ainda mais intensas. Eu não teria como desenvolvê-las aqui sem dar
vários spoilers. Vou terminar compartilhando a questão que, para mim, é a mais
importante do filme. Uma relação nunca acaba porque mesmo que deixemos de ver e
conviver com alguém essa pessoa permanece conosco no plano da memória e tudo o
que vivemos com ela faz parte do que somos. Há também relações que se
transformam com o tempo, continuam existindo, mas como em um vácuo. Jake se
relacionava com os pais no presente, mas com a cabeça e os sentimentos
conectados à relação que tinha com eles no passado. Logo, não havia relação no
presente para além das memórias do passado. Meu ponto é que isso ocorre porque
as relações do passado foram tão fortes na construção do homem que o Jake é, que
deixá-las para trás seria abrir mão do próprio Jake, algo assustador para
qualquer pessoa. Porém, talvez se Jake tivesse “matado” seus pais do passado, poderia ter construído uma relação diferente com eles no presente, tendo seus pais também no presente. Em termos
antropológicos, ser eu é ser outro simultaneamente. E nesse jogo de identidades
e alteridades definimos quem nós somos e quem são os outros, com alguma margem
de escolha. Ninguém é bom ou mau, belo ou feio, certo ou errado, Deus ou o
Diabo. Todos nós fomos e somos isso tudo; e nossas relações dependem da pitada
de cada item que queremos colocar nesse “caldeirão de empatias”. Inaugurar uma
nova relação a cada período com nossos entes queridos pode ser bom,
principalmente reconhecendo o que há de bom e de mau em cada um deles. Esse
parece ser um dos recados do filme. É um tremendo paradoxo, mas acabar com tudo
e começar tudo pode ser a mesmíssima coisa, desde que queiramos aqueles outros
em nossas vidas, dentro das possibilidades trazidas por novas formas de
relacionamento. Enfim, assistam ao filme! Vale muito a pena.