Olá,
Esse post também está disponível em formato podcast. Caso prefiram, é só clicar no link.
https://soundcloud.com/rodrigo-rosistolato/200407_007a
Seguimos com o texto:
Existe uma regra
elementar para quem deseja estudar e fazer antropologia. É preciso observar. Há
dezenas de debates acadêmicos sobre o que é, afinal, a observação etnográfica.
Parece um nome pomposo, misterioso, ao ponto de alguns pesquisadores fugirem
dele. Mas não é tão complicado assim.
Qualquer antropólogo que se prese precisa estar atento ao
comportamento dos outros. Em campo, ele tem que buscar entender o que os outros
estão fazendo, e também o que estão pensando sobre o que fazem. Além disso, o
mundo interno do antropólogo também precisa ser objeto de reflexão. Esse olhar
antropológico demanda atenções diversas e foco em mosaico. É fundamental
observar cada peça, mas olhar para o cenário inteiro também.
No início do treinamento antropológico alguns estudantes
ficam assustados, e até felizes quando descobrem que não é necessário ser
etnógrafo para ser antropólogo. Outros, como foi o meu caso, ficam encantados
com o desafio de viver a vida com as pessoas que você está pesquisando e
separar analiticamente cada momento dessa vivência para produzir uma abordagem
propriamente antropológica.
Parece bem difícil, mas com o tempo vira um
tipo de vício. No segundo ano da graduação eu passei a me perceber vivendo
dentro e fora dos cenários de sociabilidade que eu frequentava. Ao mesmo tempo
em que curtia uma noite na Lapa, por exemplo, passava boa parte do tempo
olhando para o comportamento das pessoas, tentando compreender as ações
ritualizadas, separando neófitos e veteranos naquele espaço, ensaiando níveis
de previsibilidade nos contextos já familiares, buscando caminhos compreensivos
para as ações das pessoas que ali estavam e, principalmente, conversando com
todo mundo.
As conversas, isso é importante dizer, por vezes eram
mais monólogos do que conversas em sentido estrito. O antropólogo precisa ouvir
atentamente o que cada pessoa tem a dizer sobre o ambiente e sobre as
atividades ali realizadas. Se as falas causam estranhamento, quanto melhor. Sem
estranhamento não há antropologia. Essa é a primeira lição que qualquer
aprendiz precisa aceitar.
Até ai é bê-a-bá antropológico, mas eis que surgem novas
peças nesse tabuleiro: o COVID-19 e o isolamento social! Antropólogo isolado em
casa é um caso sério. Vai fazer o que da vida? Vai observar o que? Vai
compreender as ações de quem? Não tem jeito. A única solução possível é correr
para a janela. Ou melhor, para as janelas.
Eu tenho frequentado quatro janelas simultaneamente. A da
sala, a da TV, a do computador e a do celular, não necessariamente nessa ordem,
e nem cada uma delas em separado. Gosto de todas, mas não no mesmo grau. Minha
predileta é a da sala. Nela, observo a rua outrora movimentada e agora
silenciosa, quase sepulcral à noite.
Durante o dia, o mundo ainda gira um pouquinho. As
pessoas andam para lá e para cá, caminham com seus cães, compram alimentos,
trabalham e se relacionam. É interessante observar que o COVID-19 passou a
conviver com todos nós. Ninguém quer a presença dele, mas ele insiste em ficar.
Uma das cenas que observei foi curiosa. Duas pessoas caminhavam com seus cães e
cruzaram uma o caminho da outra. Não deram bola para esse encontro, até que
seus cães se curtiram e quiseram se aproximar. Daí, tensão evidente. Eles não
sabiam se deixavam os cães chegarem perto um do outro e trocar uns carinhos ou
se seguravam suas coleiras impedindo qualquer contato. Por isso, ficaram ali,
naquela dúvida.
Quem
era o quinto elemento da história? Ele! COVID-19. Dois seres humanos, dois
animais e um vírus em pleno relacionamento em frente à minha janela. Incrível!
O maior problema é que o vírus não falava nada, e não falará. Ele é
onipresente, mas não se manifesta a não ser em silencio. Nesse caso específico,
cada um seguiu com seu cão e seu COVID-19 a tiracolo, sem trocar nenhuma
palavra.
Ué, mas eles estavam contaminados? Essa é a grande
questão e a que menos importa. Tanto faz se estavam contaminados ou não. O
COVID-19 estava ali, orientando as relações entre aquelas pessoas e aqueles
animais; e o melhor que elas fizeram foi aceitar a presença dele e seguir em
frente, sem toques, carinhos, abraços e trocas de telefones. Isso tudo elas
deixaram para depois que o COVID-19 for embora. Uma
das vantagens da antropologia é a certeza sobre certo grau de regularidade nos
comportamentos humanos. Duas pessoas, no mesmo bairro, andando com seus cães em
um determinado horário. É muito provável que se encontrem novamente,
pós-COVID-19 e possam fazer tudo o que deixaram de fazer nesse encontro. Estou
torcendo para isso, principalmente para os cães que se amaram.
Em síntese, o novo mundo está posto e temos que conviver
com ele. Vale a pena abrir mão dos contatos físicos agora para que tenhamos
muitos outros mais tarde. As janelas ajudam muito. Aquela invenção antiga que vínhamos
usando cada vez menos também ajuda: o telefone (usado para falar, é claro!).
Para
os antropólogos, o universo das interações está vivíssimo. É só reconfigurarmos
o nosso olhar para o que há de novo, inclusive no mundo on line, e continuarmos observando as janelas em mosaico. Para quem
quer aprender a observar, o momento também é ótimo!
Vamos
aproveitar o novo mundo para aprender a viver nele!