Existem roteiros
turísticos de todos os tipos, dos mais festivos aos mais reflexivos, passando
por aqueles que eu classifico como necessários, fundamentais. Esses roteiros são os que permitem que olhemos para o passado e entendamos as tragédias que
construímos. Assim, pelo menos em tese, não iremos reproduzi-las no presente e
nem tampouco pensa-las como projeto de futuro.
Os campos de
concentração transformados em museus fazem parte desses roteiros. Há vários
espalhados pela Europa e estão lá para não deixar que a Europa – e o mundo –
esqueçam da miséria que foi o nazismo, dos milhares de corpos que foram destruídos,
de todas as subjetividades que foram destroçadas por um regime que transformou
a destruição em massa de pessoas em objetivo fundamental da existência do
próprio regime.
Eu visitei dois campos
de concentração nos últimos anos. O primeiro deles foi o de Sachsenhausen,
nos arredores de Berlim. O segundo, o Forte Breendonk, nos arredores da
Antuérpia e de Bruxelas, na Bélgica. Ambos são museus e oferecem experiências diferentes,
pautadas nas funções que aqueles espaços exerciam quando funcionavam como
campos de concentração.
Sachsenhausen era um campo de “estágio” para nazistas. Não se tratava de
um campo de extermínio, como Auschwitz, mas exterminou centenas e centenas de
judeus e outros povos "indesejáveis". Os jovens soldados e os oficiais treinavam
em Sachsenhausen para depois aplicarem as técnicas aprendidas ali nos outros campos em que fossem "trabalhar".
Seria impossível descrever em um único post todas as reflexões que a
visita a esse campo proporcionou. Contarei apenas duas delas. A primeira foi a
observação de um caminho de pedras totalmente irregulares. Ele está lá, e era
usado para amaciar as botas dos soldados nazistas antes que fossem para a
batalha. Como funcionava? Os prisioneiros eram obrigados a calcar as botas
novas e caminhar durante todo o dia por essa estrada feita com pedras e outros
materiais irregulares. Assim, as botas machucariam seus pés e não os dos
soldados. Quando os soldados as utilizassem, já estariam amaciadas. Os
prisioneiros estavam famintos, desnutridos, sem roupas adequadas para o inverno
alemão, e passavam o dia caminhando, arrebentando seus pés nas botas novas para
o gozo sádico de uma plateia de soldados. Esse é apenas um exemplo de algo que
não tem outro nome além de atrocidade. Há vários outros, dezenas de outros
exemplos.
No mesmo campo, em certo momento, ouço uma voz feminina dizendo “excuse-me”, quase ao pé do meu ouvido.
Era uma mulher jovem, que deduzo ter por volta de 30 anos. O pedido de licença
se dava porque eu estava atrapalhando a selfie
dela. Eu estava parado, observando o cenário, e ela precisava da fotografia
perfeita, sem minha presença. Ela queria que somente o seu rosto sorridente e o
muro estivessem na foto. Mas que muro era esse? Sachsenhausen usou várias “técnicas”
para matar judeus e outros povos que ali estavam, e uma delas era o
fuzilamento. A jovem mulher queria a foto “perfeita”, sorrindo em uma
fotografia com o muro de fuzilamento em que centenas de pessoas perderam a
vida.
O Forte
Breendonk era um campo de concentração e deportação. Era usado pelos nazistas
para efetuar registros, triagens e deportar prisioneiros de todos os tipos.
Isso não significa que não havia mortes, torturas e toda a miséria presente no
nazismo. Pelo contrário. Também nele o gozo sádico quase não tinha limites. Limitarei
meu relato a dois episódios ocorridos no mesmo espaço: a sala de tortura.
A sala de tortura era utilizada
para a obtenção de informações que interessassem ao avanço do Reich. Os instrumentos
estão lá, preservados, e há no áudio-guia uma descrição detalhada dos tipos de
tortura ali realizados. Dentre esses horrores, chamou-me atenção a
racionalidade presente naquele cenário, materializada em uma canaleta que
percorria todo o espaço. A lógica era a seguinte: como os prisioneiros seriam
torturados e sangrariam, era importante ter uma canaleta que concentrasse o
sangue e o conduzisse para o ralo, mantendo a “higiene” do espaço.
A rotinização da morte promovida
pelos nazistas já foi descrita por vários autores, dentre os principais está a Hannah
Arendt. Ler seus textos é doloroso. Ver, dói mais ainda. É impossível não
indagar sobre onde foi parar a humanidade daquelas pessoas.
Nesse mesmo espaço, a sala de
tortura, um professor conduzia seus alunos. Iniciou uma aula sobre a sala, as
torturas... No meio da aula, pegou a corda de um dos instrumentos de tortura,
puxou e fez uma brincadeira. Algo do tipo, “Soyez
de bons élèves, sinon...” Mais da metade da turma riu. Alguns poucos, duas
meninas principalmente, manifestaram a sua indignação saindo da sala. O
professor também riu da sua própria piada infame.
Vejam que tive uma experiência
singular em dois campos de concentração bem diferentes. Em ambos, ao mesmo
tempo em que seres humanos sentiam as dores proporcionadas pela presença em um
lugar desumano como aquele, outros seres humanos desejavam fazer a selfie perfeita e piadinhas com seus
alunos. Daí, juntando as duas, fiquei pensando que nesses casos é preciso
escolher um lado. De qual lado você está? Quer a selfie e a piadinha? Ou prefere
a vivência museológica desse horror para que a tua existência contribua para que
ele nunca mais aconteça?
Eu escolhi o meu lado. Quero que
minha existência contribua para que esse horror nunca mais aconteça. É por isso
que estou escrevendo esse post e vou falar sobre essa experiência em todos os
lugares que puder. E também não vou votar em quem defenda torturadores e fale bem de mazelas humanas.
Por outro lado, tem gente por ai
que está reproduzindo cenários nazistas, vestindo-se quase como nazistas,
ouvindo as músicas que eram as preferidas dos nazistas, falando como os
nazistas. Esses seres humanos, se estivessem comigo em Sachsenhausen ou no Forte Breendonk,
provavelmente fariam a selfie e
ririam da piadinha infame do professor. E você, faria o quê?