Eu
demorei um pouco para entender, mas agora caiu a ficha definitivamente. Eu sou
um homem inútil e o que eu faço para viver e existir não tem importância para a
nova/velha sociedade brasileira. Agora que compreendi definitivamente qual foi
a identidade a mim imputada pelo atual governo, decidi aceita-la e ressignificá-la.
Afinal, ser um inútil tem lá suas vantagens. Ninguém espera nada de você e, por
isso, é possível fazer coisas criativas e até um pouco ousadas. Ao mesmo tempo,
penso que é importante que a sociedade conheça a rotina daqueles que hoje, como
eu, são classificados como inúteis. Por isso, decidi apresentar minha rotina
aqui.
Agora
são 23h:55m e eu estou trabalhando desde 8h:30m. Já faz algum tempo que me
acostumei com essa rotina e com uma carga reduzida de horas de sono. Em geral,
deito após as 2h:00m da manhã e sempre levanto entre 8h:00m e 9h:00m. É
interessante porque sempre durmo e acordo no mesmo dia. Em geral, as pessoas
dormem em um dia para acordar no outro, mas eu já me acostumei com isso e vivo
assim todos os dias, inclusive nos finais de semana. Daí meu dia foi o seguinte:
às 8h:30m eu estava com o computador ligado, terminando de corrigir um texto
que vou encaminhar para uma revista e está quase no prazo. Eu dormi com esse
artigo e acordei com ele. É necessário porque a revista não pode me esperar.
Depois disso, segui para a Universidade onde encontrei uma aluna de mestrado,
excelente por sinal, que precisava conversar comigo sobre o trabalho de campo
que está realizando. É uma dissertação sobre a relação de professoras com
crianças pobres na educação infantil. Após a conversa eu voltei para casa
porque eu precisava de um material que estava no computador de casa para enviar
para outra aluna, de graduação, também excelente, que está fazendo uma etnografia
em uma escola pública. Trocamos algumas mensagens durante o dia e ela precisava
do material. Aproveitei o restante do tempo para retomar a organização do próximo
número da Revista Contemporânea de Educação. Eu sou editor chefe e é minha
responsabilidade publicar a revista até a segunda semana de maio. Na sequência,
comecei a corrigir a tese de doutorado de outra aluna excelente, que precisa
defender até maio. Estava com essa tese até agora, momento em que resolvi
escrever sobre a minha vida inútil. O dia ainda não acabou. Ainda tenho duas
coisas para fazer.
Durante esses anos de
inutilidade eu fiz o seguinte:
Ø Concluí
72 orientações de estudantes de graduação e pós-graduação.
Ø Participei
de 137 bancas de trabalhos de conclusão de cursos de graduação, mestrado e
doutorado.
Ø Estive
em 23 bancas de concursos e comissões julgadoras.
Ø Publiquei
27 artigos em revistas acadêmicas.
Ø Escrevi
5 capítulos de livros.
Ø Publiquei
31 trabalhos em anais de eventos acadêmicos nacionais e internacionais.
Atualmente
tenho 14 orientações em andamento (uma de mestrado, 6 de doutorado e 7 de
graduação). Tenho mais dois livros que serão publicados esse ano, em parceria
com minha querida amiga e excelente pesquisadora Maria Amalia Oliveira; e com
outros amigos também queridos e referências em suas áreas. Estou também
editando um livro sobre ensino de matemática no Brasil e na Finlândia, em
parceria com a querida amiga e pesquisadora Laura Mazzola. Sou editor chefe da
Revista Contemporânea de Educação, e editor de seção da revista Estudos em
Avaliação Educacional.
Além
disso, eu ministro aulas na graduação e na pós-graduação, realizo e coordeno
investigações científicas, contribuo com a gestão da Universidade e oriento
meus alunos. As orientações acontecem ao vivo, por e-mail, por whtsapp e quase
por sinal de fumaça quando todo o resto falha.
Eu
não estou reclamando. Ganho meu salário para fazer meu trabalho e o realizo com
prazer. Eu não escolheria outra carreira, principalmente qualquer carreira de
mercado.
Descrevi
minha rotina diária de trabalho para dizer para a sociedade brasileira que ser
inútil dá muito trabalho. Agora, para que eu continue sendo esse inútil que vos
fala, a Universidade tem que continuar recebendo os recursos que lhe são
devidos, eu preciso continuar recebendo meu salário e os funcionários técnicos precisam
estar presentes.
Agora,
se você de fato não vê nenhuma importância em nada disso, vá (ou venha) para o
facebook e bata palminhas para o Ministério da Educação. Comemore a derrocada
das Universidades brasileiras e de seus pesquisadores e, principalmente, bata
no peito e grite bem alto que você realmente considera tudo isso inútil e não
quer pagar por nada. Seja honesto comigo e com todos os pesquisadores. A partir
daí, você poderá viver em plena e absoluta ignorância. Seja um ignorante feliz
e aplauda também a estupidez alheia. Acho legal quando o estúpido aplaude a
própria estupidez e a dos outros. Considero a atitude altiva e corajosa.
Agora vou voltar para a
tese da minha aluna. Ela depende da correção para defender e, se a banca
aprovar a tese, virar doutora. Eu também tenho que dar um parecer para um
artigo, hoje ainda. Mas a madrugada está ai, e o feriado do dia do trabalho
também.